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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, outubro 03, 2012

Onda de intolerância religiosa no Brasil


Pregadores da barbárie


Rede Brasil Atual

O medo, a ignorância e o preconceito

Tudo o que é diferente de mim me causa no mínimo estranheza”, analisa psicólogo em entrevista  
Cristiano Navarro

Para o psicólogo e ebome (que em Ketu significa: “meu irmão mais velho”) do Ilê Axé Kalamu FunFun, Vicente Galvão Parizi, a ignorância dá origem ao medo das religiões de matriz africana. 
Parizi, que é mestre em ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entende que boa parte deste medo foi alimentado pelos preconceitos social e racial. “Não podemos esquecer que houve uma Bula Papal que dizia, em nome de Deus, que os negros não possuíam alma e por isso podiam ser escravizados”. 
Brasil de Fato – Por que as pessoas têm medo das religiões de matriz africana?
Vicente Galvão Parizi – Acho que fundamentalmente o medo vem da ignorância e de ideias pré-concebidas. Mas há vários aspectos a serem observados. Vou relacionar alguns. Em seu livro Notas sobre a religião dos Orixás e Voduns, Pierre Verger apresenta documentos sobre o encontro dos brancos colonizadores e os africanos e como os brancos, em especial os padres, não podiam entender uma cultura – e uma religião – tão diversa. Por exemplo: Exu era cultuado ao ar livre, portanto havia assentamentos aos pés de árvores. Ao ver adeptos dando dobale [saudações a orixás] nesses assentamentos, os brancos concluíram que se tratava de culto a árvores. E nos documentos compilados por Verger encontramos isso: trata-se de pagãos que têm árvores por deuses. Entretanto, nada mais longe da realidade! 
   
Para psicólogo, preconceito contra religiões de matriz africana
está relacionado a questões raciais e sociais - Foto: Rita Barreto
   
Outra confusão é que Exu é representado com chifres. Para os padres cristãos, chifre é privilegio de Satanás, portanto Exu é o demônio. E concluíram que os africanos eram adoradores de Satã. E por aí vai: a ignorância e o desconhecimento gerando interpretações falsas que, muitas delas, até hoje continuam assombrando corações e mentes. 
Outro aspecto desconhecido pela maioria é que as religiões africanas são monoteístas. Há um deus único – olorum, olodumare, qualquer que seja o nome – e suas manifestações – os orixás. Ou seja, os Orixás não são deuses, são manifestações de deus, são as forças criadoras de Olorum, as forças da natureza. Mas para a maioria das pessoas que desconhecem a religião, trata-se de uma religião com muitos deuses. Nesse sentido, o monoteísmo cristão se enxerga como superior, e as religiões africanas passam por “primitivas e politeístas”. 
Mas o aspecto crucial, creio eu, é a questão do sacrifício de animais. As religiões cristãs passaram a abordar o sacrifício a partir apenas do aspecto simbólico: na consagração o sacerdote invoca o corpo e o sangue de Cristo e os fiéis ingerem a hóstia se alimentando desse corpo e desse sangue. Nas religiões de matriz africana, o sangue é efetivamente derramado. Mais uma razão para que se diga que são religiões primitivas, que o desenvolvimento do cristianismo as superou. 
Como se dá a construção deste medo?
Tudo o que é diferente de mim me causa no mínimo estranheza. Foi assim com os colonizadores brancos na China, no Japão, na América e na África. Para poder entender o diferente de mim, não posso apenas observar, apenas ver e não perguntar. Não questionar impede que se compreenda o que realmente acontece. Não adianta ver pessoas tomando café, ou ler livros sobre o café: apenas tomando café poderei entender o que realmente é tomar café. 
O medo, a meu ver, é causado pela ignorância, pelo desconhecimento, pela falta de diálogo da maioria cristã com os adeptos de religiões africanas. 
O preconceito contra as religiões de matriz africana se dá em conjunto com as questões racial e social?
Certamente. Não podemos esquecer que houve uma Bula Papal que dizia, em nome de Deus, que os negros não possuíam alma e por isso podiam ser escravizados. No Novo Mundo, as religiões de matriz africana eram privilégio de negros, escravos e pobres. Portanto, praticadas pelos brancos apenas às escondidas. Nesse sentido, o papel de Joãozinho da Goméia [adepto do candomblé] foi crucial, e sua ida para o Rio de Janeiro, sua entrada no meio político, seusshows em teatros, a feitura de brancos etc, tudo serviu para divulgar a religião no meio de brancos e de pessoas de estrato social superior. 
Como você vê o crescimento das religiões neopetencostais detentoras de poder em diversas esferas institucionais (político, judiciário, econômico, de comunicação) que pregam contra as religiões de matriz africana?
Com muito temor. Na sua maioria, são cristãos fundamentalistas, atendo-se à forma da lei e não ao seu sentido. Em tese, Jesus pregava o amor a todos, mas na prática o que o cristianismo gerou foram religiões absolutamente intransigentes com o diferente. A Inquisição com suas fogueiras é a melhor demonstração disso. Mas no Brasil de hoje a Inquisição continua acontecendo nos rituais de exorcismo contra gays e lésbicas, baseadas na ideia de que Exu é a personificação do demônio; está presente nos ritos de renúncia a Satanás, em que adeptos quebram seus ibás de feitura e renunciam em voz alta aos orixás. Muitos desses sacerdotes estimulam ações concretas, como ataques a terreiros e adeptos nas ruas fazendo despacho, assim como ataques a gays e lésbicas nas ruas. Nesse momento, estamos assistindo pela primeira vez a uma eleição em que o candidato apoiado pelos neopentecostais – Celso Russomanno – tem chance real de ser escolhido como prefeito de São Paulo. Fato inédito e que demonstra a união dessas forças. 

A inquisição dos pastores contra nossas matrizes


Por meio de suas rádios e TVs, neopentencostais acirram seu discurso de intolerância contra religiões de matriz africana
Cristiano Navarro  



Onda de inquisição de grupos neo-pentencostais contra religiões de matriz africana tem crescido em Pernambuco - Foto: Alex Oliveira-Setur



Em marcha, carregando faixas e misturando cantos de louvor com ameaças e incitação ao ódio, um grupo de centenas de evangélicos mobilizou-se na noite do dia 15 de julho e tentou invadir o terreiro de pai Jairo de Iemanjá Sabá, localizado no bairro do Varadouro, em Olinda (PE). As imagens da saída do grupo foram registradas pelo filósofo e babalorixá Érico Lustosa, no vídeo Cristãos agredindo Terreiro de Candomblé, publicado no Youtube. 
Em um segundo vídeo-testemunho, também publicado no Youtube pelo Jornal do Commercio, Lustosa lembrou que o grupo gritava “Sai daí, Satanás!” e que ameaças foram feitas por um sujeito desconhecido durante a invasão. “Cuidado porque eu me converti evangélico, mas eu sou ex-matador”, gritava o manifestante. Assustados, tanto pai Jairo de Iemanjá quanto Érico Lustosa se negaram a voltar a falar sobre o assunto. 
O fato ocorrido em Olinda não é isolado. A onda de inquisição de grupos neo-pentencostais contra religiões de matriz africana tem crescido no estado de Pernambuco. No primeiro semestre deste ano, foram registradas a invasão e a destruição de sete terreiros de religião de matriz africana no agreste pernambucano. O estopim do acirramento e perseguição aos cultos de matriz africana se deu após o assassinato de uma criança de nove anos de idade, degolada na cidade Brejo da Madre de Deus, também localizada na região do agreste. Logo após a descoberta do cadáver, a polícia veio a público e descreveu o crime como sendo fruto de um “ritual de despacho”. Daí pra frente, programas locais de rádio e TV, policialescos e proselitistas, passaram a insuflar o ódio contra as religiões de matriz africana. 
“A mídia não separou o joio do trigo ao associar um crime de uma religiosidade que não tem nada a ver. Essa associação feita pelos programas de televisão policialescos foi só o estopim para as agressões. Mas a gente sabe que os pastores na TV aberta ocupam a casa das pessoas cotidianamente pregando essa intolerância”, afirma mãe Beth de Oxum, yalorixá do Ilê Axé Oxum Karêe, membro da Comissão Nacional de Povos Tradicionais de Terreiro. 
Com o aumento do número de ameaças e agressões, os povos tradicionais de terreiro, integrantes da jurema sagrada, do candomblé, da umbanda, do terecô, do batuque, do tambor de Mina Jeje e Nagô, do xangô pernambucano, da kimbanda, rezadeiras, oradores do Nordeste, catimbozeiros e pajés sentiram-se obrigados a informar por meio de nota pública que não praticam sacrifícios humanos em suas liturgias e rituais. “Nossas teologias não concebem a morte humana como caminho para alcançar qualquer benefício na vida e desconhecemos qualquer ritual pertinente a esta prática condenável. Expugnamos completamente estes atos absurdos de assassinato em nome de qualquer deus”, afirmaram em nota. 
Em agosto, o pedido de proteção aos terreiros feito por representantes da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, da Secretaria de Defesa Social e do Ministério Público de Pernambuco foi atendido pela Polícia Militar, que destacou agentes para cuidar destes casos. 
Tortura
Outro caso recente que revoltou as comunidades de terreiro ocorreu no final de 2010, quando Bernadete Souza Ferreira dos Santos, yalorixá e coordenadora de educação do assentamento Dom Helder Câmara, em Ilhéus, Sul da Bahia, de 42 anos, foi torturada por policiais militares. Enquanto recebia um Orixá, yalorixá foi puxada pelos cabelos e jogada em cima de um formigueiro. Os polícias pisaram no seu pescoço e disseram: ‘só assim para o demônio sair’. Depois de uma série de torturas, Bernadete foi colocada em uma cela reservada para homens. O caso de Bernadete ainda espera por julgamento. 

Veja os vídeos abaixo:
 
*Cappacete

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