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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, janeiro 26, 2016

Stalin nunca foi um demônio: a obra de Domenico Losurdo

Stalin nunca foi um demônio: a obra de Domenico Losurdo


Domenico Losurdo é um historiador italiano comprometido com o comunismo (marxista-leninista). É professor de história da filosofia na Universidade de Urbano, na Itália, e autor de vários livros. Seu viés ideológico assumido não prejudica a obra, mas lhe dá clareza, pois sabemos de onde ele parte, qual é sua situação pessoal. Além disso, Losurdo é cuidadoso ao levantar muitos dados históricos e estatísticos que se não comprovam plenamente o que defende, pelo menos, abre uma dúvida sobre os acusadores.

Durante as férias de janeiro eu li a sua obra mais conhecida: “Stalin, história crítica de uma lenda negra”. São 350 páginas de defesa e combate. Losurdo assume nela a difícil tarefa de defender historicamente o “guia genial dos povos” e líder da antiga União Soviética, Joseph Stalin, das mais diversas e injustas acusações do pós-Muro de Berlim, em especial, das “mentiras e calúnias” dos trotskistas e do duvidoso “Relatório Kruschiov” — a narrativa dos vencedores — que seria o momento da “desestalinização” da URSS e dos partidos comunistas pelo mundo.

O primeiro capítulo vai direto ao ponto, o “Relatório Kruschiov” (em 25 de fevereiro de 1956), um suposto documento “secreto” — que os maiores inimigos do comunismo tiveram acesso rápido e em primeira mão — do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), liderado por Nikita Kruschiov, que tem como objetivo, na visão de Losurdo, “liquidar Stalin” no XX Congresso do partido. Stalin, que antes era visto como “Tio Joe”, “grande líder”, “homem que derrotou o nazismo”, “o salvador da Europa da barbárie de Hitler” etc. era, até então, elogiado por pessoas como W. Churchill, Harold Laski, Hannah Arendt, Benedetto Croci, Thomas Man, Norberto Bobbio, Carlo Rosseli e Arnold Toynbee e, especialmente a partir de 1956, redesenha-se o líder da URSS como “degenerado monstro humano”. Foi uma operação que “precipitou deus no inferno” e Losurdo tentará encontrar os motivos e questioná-los, um à um.

No capítulo 2, o autor analisará o conflito ideológico na URSS desde a Revolução Russa de 1917 até chegar nas origens do chamado “stalinismo” no capítulo 3. Depois disso, debruça-se sobre a “Era Stalin”, a democracia socialista e a ditadura do proletariado, os Gulags, a burocracia, a ditadura desenvolvimentista e a “necessidade” de um “universo concentracionário” — autoritarismo — para enfrentar as dificuldades e incertezas daquele tempo.

Losurdo dedica-se, nos capítulos 5, 6 e 7, a analise mitológica. O autor pretende demonstrar com diversos dados históricos, coletados inclusive de inimigos públicos de Stalin, como se deu a construção simbólica do “homem cruel”, a ideia de que Stalin e Hitler seriam “irmãos gêmeos” (a difícil tese que acusa de antissemitismo os comunistas daquele período), a paranóia ocidental e a psicopatologização de Stalin e como esse processo levou o homem Stalin a ter sua imagem submersa entre a história e a mitologia.

No último capítulo, Losurdo joga luz no mundo contemporâneo e traça como se deu a “demonização” — tudo que é ruim, ditatorial, concentracionário, autoritário é “stalinismo” — fazendo uma hagiografia do período. Acusa a “Nuremberg anticomunista” de reescrever a história do século XX não somente para desconstruir Stalin, mas para desmoralizar a própria ideia de comunismo.

No fim do livro, o ensaio de Luciano Cânfora, ácido crítico do que conhecemos como “democracia ocidental”, é um brinde para os leitores. Chama-se “De Stalin a Gorbatchov: como acaba um império”. Concordando com Losurdo, ambos vêem em Gorbatchov o artífice da patética derrocada da União Soviética, mas não compreendem os motivos exatos que levaram o projeto reformista de Gorbatchov o desastre geopolítico que favoreceu a hegemonia neoliberal e, em especial, dos Estados Unidos e da troika européia.

O livro é muito bom. O historiador se esforça para demonstrar que Stalin não era anjo, nem demônio, mas um homem de seu tempo que tomou medidas “apropriadas” ou somente compreensíveis no seu devido contexto. Trotski faria melhor? A resposta é um sonoro não, mas detalha os porquês.

Stalin morreu em 1953 e ainda hoje é um tema tabu dentro do campo marxista. Ainda há quem o admire no PCdoB, PCR, PPL (antigo MR-8), mas a hegemonia atual é dos seus críticos mais ferozes. No Brasil, o PT e o PSOL, dois partidos com forte hegemonia de trotskistas e ex-trotskistas, praticamente fez desaparecer os entusiastas do “Tio Joe”.

A leitura de Losurdo não absolve Stalin e o PCUS daquela época, mas relativiza as acusações mais levianas ao “stalinismo”, mostrando que o “totalitarismo” da URSS e seus satélites não pode ser posto em pé de igualdade com as barbaridades do nazi-fascismo.

Eu terminei o livro com a nítida impressão que Stalin não era “o monstro” que aprendi a atacar desde os tempos de militante do PCB nos anos 80. Continuo não sendo “stalinista” e defendo a democracia como valor universal, mas agora terei maior cuidado ao tratar do assunto. Só por isso, o livro valeu cada real investido.

MARCIO SALES SARAIVA é sociólogo/cientista político, apaixonado pelas reflexões teológicas, mestre em políticas públicas pelo PPGSS-UERJ e pai de Tatiana, Michel, Gabriela e Isabela. É um democrata de esquerda que defende os ideais de justiça, igualdade e direitos humanos. Milita na defesa de direitos da comunidade queer/LGBT e considera o amor/caridade como caminho sagrado para o encontro com o Divino.

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