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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, maio 20, 2010

Esclarecimentos sobre a questão do Irã






Esclarecimentos sobre a questão do Irã
Alguns pontos foram alvo de confusão nesse imbróglio persa, e a mídia brasileira, com seus tentáculos de trolls pervadindo tudo, contribuiu para isso, ao não informar corretamente. Em seu antilulismo psicótico, a mídia não consegue mais informar com isenção e, neste caso, está deliberadamente confundindo a opinião pública para esconder uma vitória que pode fortalecer politicamente o governo. Vale tudo para eleger Serra, até destruir o mundo.

É incrível a inversão de valores no caso do Irã. Os Estados Unidos patrocinaram um golpe de Estado no Irã em 1953. O país era uma democracia moderna, laica e tranquila, mas que se tornou inimiga dos interesses ocidentais quando nacionalizou suas companhias de petróleo. Depois deram dinheiro e armas químicas para Saddam Hussein invadir o Irã nos anos 80, num conflito que matou 1 milhão de iranianos e devastou a frágil economia do país. Subsidiaram Bin Laden, um saudita, para que ele montasse uma organização guerrilheira contra a União Soviética e daí surgiu a Al Qaeda. Aceitaram que Israel construisse bombas atômicas sem autorização da comunidade internacional. E agora os EUA e seus lacaios, incluindo as hipócritas lideranças européias, querem pintar o Irã como o grande vilão da humanidade?

Vamos esclarecer alguns pontos. O acordo do Brasil é o que a própria ONU havia exigido no ano passado e não conseguiu levar adiante, certamente pela incompetência da diplomacia americana e européia, que não se cansa de usar um vocabulário extremamente desrespeitoso e agressivo em relação ao Irã. Ele (o acordo) supõe que o Irã armazene e enriqueça a maior parte de seu urânio em outro país. Mas não exclui o enriquecimento de outra parte no próprio Irã. E sobretudo não significa, obviamente, o cancelamento do programa nuclear iraniano.

Abaixo, a capa do Globo desta terça-feira 18 de maio:



Francamente, eu acho absurda essa exigência de que o Irã processe seu urânio em outro país. Não sei como eles puderam aceitar isso. Para mim, é uma violação da soberania iraniana. Foi um ato de muita humildade por parte do Irã e convencimento por parte do Brasil. Um gesto de paz, quase submissão. O ceticismo, beirando ao escárnio, com que as potências ocidentais estão recebendo esse gesto é uma agressão inaceitável, portanto, que certamente não ajudará a torná-lo efetivo. Já conseguiram humilhar o Irã forçando-o a processar parte de seu urânio em outro país. Que mais querem?

Eu falei num post anterior que não gosto do Irã. Explico: é porque não sou religioso e não gosto de religião. No ano passado, andei meio carola, dizendo que era católico e tal. Mas agora voltei a meu normal ateu. Claro que não gosto de um país onde a religião manda em tudo.

Outro motivo para não gostar é que eles não bebem álcool. Acho que é proibido por lá, ou quase isso, e eu sou apaixonado por bebidas de todo tipo. Não suportaria viver num país onde não posso tomar minha cervejinha em paz, e acho um absurdo intolerável que seja proibido. Mas é o país deles e eu não tenho nada a ver com isso. Os EUA também proibiram o consumo de álcool por muitos anos.

Agora, o que me irritou mesmo foi aquela ONG fincar mãozinhas na areia de Ipanema pedindo direitos humanos no Irã. Ora, o Brasil é um dos países onde mais há crianças vagando pelas ruas, sofrendo terríveis traumas psicológicos por causa do crack, da cola, do abandono, da violência, da fome. Em São Paulo, a polícia tem torturado e assassinado um motoboy negro por semana. Há poucos meses a mesma polícia paulista agrediu professores indefesos e desarmados que protestavam por melhores salários. E essas dondocas querem direitos humanos no Irã?

Alguém conhece de verdade os problemas do Irã para exigir que as coisas sejam assim ou assado por lá? Há poucas décadas, milhões de iranianos morriam de fome. Hoje, é um país de economia estável, quase sem miséria extrema, com um dos maiores índices de ensino superior per capita do oriente médio. As taxas de criminalidade no Irã são próximas de zero, e as dondocas de Ipanema, residentes numa das cidades mais violentas do mundo, querem ensinar ao Irã, uma civilização com dezenas de milhares de anos, como lidar com seus problemas domésticos?

O Jornal da Globo desta segunda-feira entrevistou um tucanão da USP que disse que o acordo só atrapalhou as negociações. A inveja está levando muitos intelectuais paulistas a fazerem um papel ridículo. O acordo ajudou, é claro. Isso é consenso mundial, com exceção da ultradireita bélica americana e israelense, naturalmente. A dúvida é sobre seus desdobramentos.

Além disso, é evidente que esse acordo não resolve tudo. Taí outra tática mesquinha. Inventa-se uma tese esdrúxula segundo a qual o acordo significaria o fim de todos os problemas do oriente médio e do Irã. E aí depois mostra-se que não é bem assim, e, portanto, seria um fracasso. Não é assim. Ele representa grande avanço. Diplomacia inteligente é como seduzir uma mulher bonita. É um processo. De qualquer forma, produz efeitos geopolíticos muito positivos para o Brasil e o mundo. Ele projeta o Brasil e torna o mundo multipolar uma realidade.

O Irã tem que usar energia nuclear, até porque o mundo precisa parar de usar o petróleo como fonte de energia, antes que o planeta vire um forno e não se consiga mais plantar nada em lugar nenhum. O petróleo terá usos mais nobres no futuro, como a fabricação de derivados. As fontes energéticas devem ser renováveis e limpas. E a energia do futuro, na prática, por enquanto, é a nuclear. EUA e Europa estão construindo centenas de novas usinas nucleares, afora as milhares que já possuem. Mais de 80% da energia consumida na França vem de suas usinas nucleares. É de uma hipocrisia sem limites querer que o Irã, um país pobre, não possa sequer desenvolver a tecnologia nuclear para uso pacífico.

Nos últimos cem anos, a Europa quase destruiu o mundo, matando dezenas de milhões de seres humanos. Os EUA patrocinaram golpes de Estado em todo planeta, invadiram países, mataram milhões de inocentes. Logo ali, ao lado do Irã, os EUA já mataram mais de 1 milhão de iraquianos nos últimos oito anos, provocando um tremendo desequilíbrio no oriente médio. Os moderados árabes e persas que pregavam diálogo com o ocidente foram desmoralizados pela brutalidade dos falcões ianques. E perderam eleições e poder, abrindo espaço para a linha dura antiamericana.

Podíamos ir longe e recordar o golpe de 1953, patrocinado pela CIA, que derrubou um regime laico e democrático, dando início ao processo de endurecimento da política iraniana. Mas há fatos mais recentes. A invasão do Iraque, por exemplo, também deu força à linha dura iraniana. O Irã também tem sua indústria bélica doméstica. Também tem seus falcões de guerra. Com a guerra no Iraque, eles ganharam força. O país aumentou gastos militares. Fechou-se politicamente. Ampliou a repressão a movimentos de oposição, com vistas a manter o regime coeso. É um movimento natural. Em tempos de guerra, a democracia sempre perde. Dá ânsia de vômito ver os Estados Unidos invadirem o Iraque, violando todas as leis internacionais, e depois pintarem o Irã, que sempre esteve quieto no seu canto, como o vilão do mundo.

O Irã não tem mísseis de longo alcance. Não tem armas nucleares. Não tem armas químicas. É um país militarmente fraco. Sua força reside embaixo da terra, nas suas gigantescas jazidas de petróleo. É disso que estamos falando. Toda a encenação diplomática dos EUA visa derrubar o atual regime iraniano, que é fechado, autoritário, cruel, mas nacionalista e independente, para botar um aliado que aceite vender petróleo a baixo preço às refinarias ocidentais.

Outra coisa que é preciso esclarecer. É equivocado conceitualmente falar que a esquerda adora o Irã. A esquerda democrática não tem nada a ver com a teocracia iraniana. O regime político iraniano não é de esquerda. É conservador. A teocracia iraniana floresceu à sombra da ditadura de direita nascida após o golpe de Estado patrocinado pelos Estados Unidos, durante a qual a esquerda acadêmica, intelectual, artística, trabalhista, sindical, foi totalmente dizimada. Restaram só os padrecos islâmicos. Que se organizaram, pegaram em armas e tomaram o poder. A esquerda iraniana não existe. E não se pode esquecer que uma parte da oposição ao regime dos aiatolás é bancada por Washington.

Não se pode confundir, porém, a defesa de princípios de autodeterminação e soberania com louvação besta do regime iraniano. O Irã tem problemas gravíssimos. Mas eles serão resolvidos internamente, pelos próprios iranianos. Qualquer interferência externa, já está provado, só atrapalha.

Os iranianos são inteligentes, combativos e orgulhosos e tem plena condição de evoluir politicamente com suas próprias pernas. Se a comunidade internacional quer ajudar algum país, se as dondocas de Ipanema estão preocupadas com direitos humanos, eu aconselharia voltar sua atenção para alguns países africanos, para o Haiti, ou para a baixada fluminense, onde há pessoas em situação muito mais triste do que no Irã.

Miguel do Rosário

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