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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, outubro 11, 2011

 O medo (e a humanidade) do Papa
No momento em que foi vítima do atentado de um búlgaro, em uma concentração na praça São Pedro, no Vaticano, o Papa Joao Paulo II conseguiu dizer: Por que eu?
Não teria se dado conta que era porque foi eleito o representante de Deus na Terra? Também não teria se dado conta do papel político central que assumiu na política mundial? Tampouco se poderia entender por que ele se lamentaria de abandonar este Vale de Lágrimas, ainda mais ele, que teria garantido o Reino dos Céus pela vida eterna?
Foi um momento de rara humanidade do Papa. Ele, a quem eu havia visto, prepotente, na Nicaragua sandinista, tentando dar lições de democracia a um regime popular, desde um Estado teocrático. Ele, que havia retirado a mão, no aeroporto, quando Miguel D’ Escotto – sacerdote e ministro de Relações Exteiores do governo nicaraguense - se ajoelhou, humildemente, para beijar sua mão. Ele, que reiterou várias advertências ao povo nicaraguense que o interrompia no seu discurso na Praça Augusto Cesar Sandino, no centro de Managua, quando se davam conta que ele se atrevia a criticar a FSLN, e acabou se retirando da Praça, sem terminar seu discurso – a que ele havia acorrido com uma elegante bata branca e um imponente bengala.
Esse mesmo Papa teve medo da morte no atentado, a que sobreviveu, e pode seguir representando a seu Deus neste Vale de Lágrimas.

 


O filme de Nanni Moretti – que entrará logo em cartaz no Brasil, - se chama Habemus Papam: o psicanalista do Papa. Um cardeal – um Michel Picolli envelhecido, mas sempre extraordinário – é eleito Papa, mas não quer, tem medo, entra em crise, chora, se isola no seu quarto, enquanto um cardeal avisa aos aglomerados na Praca – turistas e uma parte de fieis – que o novo Papa já foi eleito – conforme a fumaça branca -, mas que estava orando no seu quarto, pedindo força a Deus para assumir sua representação na Terra.
Chamam um psicanalista – representado pelo próprio Nanni Moretti – para conversar com o Papa, mas com a recomendação expressa de não tocar em temas como a infância do Papa, sua mãe, seus sonhos, além da presença de todos os cardeais em volta, o que leva ao fracasso do apelo a Freud.
O Papa acaba fugindo e sai, com roupas civis, pelas ruas de Roma, convivendo com as pessoas como se fosse um mortal qualquer. Providencia-se um funcionário do Vaticano para ocupar seu quarto e fazer aparecer às vezes sua mão para a multidão reunida na Praça, outras vezes apenas agitando a cortina, acendendo e apagando a luz. Esse funcionário fica comendo e dormindo no quarto do Papa, os cardeais acreditando que é o Papa que esta ali, inclusive quando o serviço do Estado do Vaticano coloca um CD e toca Mercedes Sosa cantando Todo cambia, que os cardeais acompanham, radiantes, crendo que era um sintoma do estado de ânimo festivo do novo Papa.
Como o Concílio não terminou, porque o Papa ainda não aceitou a sua nomeação, nem os cardeais, nem o psicanalista podem sair. Então este organiza um alegre campeonato de vôlei entre os cardeais representados no Concílio, como passatempo e forma de descarregar as tensões. O Vaticano como Estado está em jogo. O novo Papa está nomeado, não pode ser substituído por outro, nem se sabe o que fazer com ele, se não assumir o cargo.
Toda a trama funcional da nomeação de um cardeal como representante de Deus na Terra fica pendendo por um fio, enquanto o nomeado passeia alegremente por Roma, vai ao teatro, come em restaurante, conversa com as pessoas do povo, feliz, no seu verdadeiro mundo, enquanto está em suspenso o cargo de Deus na Terra e o povo continua esperando seu discurso. Não conto o final, mas basta isso para revelar a humanidade de uma pessoa comum, que tem medo, que chora, que entra em crise, que escapa das responsabilidades que lhe querem impor, para fazer do filme uma grande película.
O mesmo exercício de humanização que tinha feito Saramago no seu Evangelho segundo Jesus Cristo e num de seus últimos livros – Caim. Aqui Caim conversa com Deus sobre o papel que lhe atribuiu na Terra, suas responsabilidades e o questionamento de Deus ao impor-lhe o conflito com o irmão e a imagem negativa nesse conflito. Outras circunstâncias, como a de Abrãao, a quem Deus pede que ofereça a vida do seu filho como sacrifício, são reavaliadas por Caim, que se pergunta que Deus todo bondoso é esse, que impõe a um pai o pior dos sacrifícios?
O filme de Moretti foi execrado pelo Vaticano, que se sentiu nu diante da parábola – talvez não tao irreal, dado que se propala que um dos Papas anteriores a Joao Paulo II, que teve papado curto, teria morrido em circunstâncias estranhas, associadas a suas visões inconoclastas, entre elas a de que Deus seria mulher ou homem e mulher, com todas as consequências para o tema de gênero que traria para o Vaticano e a Igreja Catolica. Em suma, a parábola pode ajudar a entender mecanismos desse estranho Estado teocrático que é o Vaticano. E diverte muito. Sem dúvida, um filme à altura das grandes comédias do cinema italiano.
Emir Sader
*CartaMaior

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