“Ag“Agora você vai conhecer a sucursal do inferno”. Foi o que ouviu o frei Tito no dia 17 de fevereiro de 1970, ao ser retirado do Presídio Tiradentes pelo Capitão Maurício Lopes Lima.
Tito de Alencar Lima, caçula entre 11 irmãos, nasceu em Fortaleza no dia 14 de setembro de 1945. Estudou no Colégio dos Jesuítas, onde começou a participar da Juventude Estudantil Católica (JEC). Tornou-se dirigente regional da JEC em 1963, quando se transferiu para o Recife, residindo num velho casarão da Rua do Leite juntamente com outros dirigentes dos movimentos da Ação Católica. Em fevereiro de 1967, ingressou no noviciado dominicano, mudando para São Paulo – Convento de Perdizes. Cursando Filosofia na USP, Tito atuou no movimento estudantil. Foi ele quem conseguiu o sítio de Ibiúna, que pertencia a um amigo, para a realização do 30º Congresso da UNE na clandestinidade. Todos os 700 participantes foram presos.
O cerco da repressão
Com o fechamento cada vez maior do regime, parte da esquerda rompeu com o pacifismo do PCB e definiu a estratégia de enfrentamento armado. O Convento das Perdizes se transformou em base de apoio à esquerda revolucionária. Abrigava perseguidos, transportava-os para outros locais, ajudava-os a sairpara o exterior, transmitia recados para seus familiares. Um grupo de dominicanos aproximou-se da Ação Libertadora Nacional (ALN) e mantinha contato direto com seu comandante, Carlos Marighella. Neste grupo, estavam, entre outros, frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo), frei Ivo (Yves Lebauspin), frei Giorgio Callegari e frei Tito.
O cerco à ALN começou em outubro de 1969, com uma série de prisões, seguidas, como sempre, de violentas torturas com o objetivo de encontrar Marighella. Na manhã de 2 de novembro, um domingo, os freis Fernando e Ivo foram presos no Rio de Janeiro pela equipe do famigerado Sérgio Paranhos Fleury, logo após desembarcarem para visitar familiares. Em seguida, conduzidos para o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e depois para São Paulo (Dops e DOI-Codi).
Torturados continuamente até a segunda-feira com pancadas, choques elétricos e pau-de-arara, os frades não suportaram as sevícias. Confirmaram a existência da base de apoio do Convento das Perdizes e a forma como mantinham contato com Marighella. Isto possibilitou a armação da cilada que atraiu o comandante para a morte (ver A Verdade, nº 12).
Frei Betto explica que não se pode atribuir unicamente aos seus confrades o êxito da operação repressiva. Que foi uma sucessão de quedas, informações de elementos infiltrados e outros fatores que levaram ao lamentável desfecho. Os freis Fernando e Ivo assumiram sua parcela de responsabilidade, nunca negaram as informações dadas sob tortura. Acreditavam que a notícia de sua prisão teria se espalhado e Marighella não telefonaria marcando encontro.
Antônio Flávio Médici de Camargo, corretor, abrigava Marighella em seu apartamento e, muitas vezes, transportava-o para os pontos onde tinha tarefas a cumprir. Ele diz que realmente Marighella tomou conhecimento vagamente da prisão de dominicanos no Rio, mas não sabia os nomes nem as circunstâncias. Quando, a seu pedido, Antônio Flávio ligou para a Livraria Duas Cidades, e frei Fernando confirmou que ele podia comparecer ao encontro no dia 4 de novembro, às 20 horas, Marighella avaliou que estava tudo bem.
Na madrugada de 4 de novembro, a equipe de Fleury invadiu o Convento das Perdizes e levou para o Dops o prior, frei Edson Braga; o vice-prior, frei Sérgio Lobo; e os frades Tito de Alencar e Giorgio Callegari. Os dois primeiros foram ouvidos e liberados horas depois. Tito e Giorgio ficaram presos e conheceram o sadismo de Fleury.
Frei Betto encontrava-se no Sul. Foi preso em Porto Alegre na manhã do dia 9 de novembro. Levado para o Dops-SP; ao ser conduzido para cela no fundo do prédio, viu nos corredores Fernando, Ivo, Tito e Georgio. “Apertamo-nos as mãos, emocionados” .
Depois, todos foram transferidos para o Presídio Tiradentes. Na cela 7, tudo corria muito calmo. Rezas, estudos, trabalhos artesanais. Mas, define frei Betto, “na prisão, os próximos minutos assustam mais do que o feixe de anos da sentença de condenação. (…) o próximo minuto pode ser o início de uma fuga, a lâmina de uma faca retalhando a carne, a visita inesperada”.
O Calvário de frei Tito
De repente, dois anos depois, é preso o dono do sítio de Ibiúna, onde se realizara o Congresso da UNE. Tito, amigo do proprietário, é retirado da cela para a “sucursal do inferno”. É dele o relato: “Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes (Oban – Polícia do Exército) no dia 17 de fevereiro de 1970. Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua. No caminho, as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, e apontavam-me seus revólveres”.
As primeiras perguntas foram sobre o Congresso de Ibiúna. Frei Tito disse que nada tinha a declarar. Os demônios entraram em ação. A primeira sessão foi só de pancadaria. Deram-lhe um descanso e mandaram que se preparasse para a “equipe da pesada”.
Não era mentira. No dia seguinte, em jejum, veio a sessão infernal com cadeira-do-dragão, choques elétricos nas mãos, nas orelhas, pau-de-arara, pauladas nos peitos, nas pernas. Repetição das perguntas, a mesma resposta: não ou silêncio!
Chamaram o chefe do inferno, Capitão Albernaz (major Benone de Arruda Albernaz, que seria preso por estelionato em 1984). “Tenho verdadeiro pavor a padre, e para matar terrorista nada me impede. (…) choques o dia todo, e, a cada ‘não’ que disser, maior será a descarga elétrica”.
Não era blefe. As perguntas não eram mais sobre Ibiúna. Nomes de padres metidos com a subversão, onde estava frei Ratton (autoexilado na Europa), aparelhos. “Não sei”, dizia frei Tito, e a cada negativa, de fato, uma descarga maior seguida de pontapés e pauladas nas costas. Partiram para a blasfêmia. Fizeram-no vestir os paramentos sacerdotais e lhe deram a “hóstia consagrada”, isto é, choques elétricos na boca.
Breve intervalo e nova sessão. Disseram que tanta resistência era característica de guerrilheiro. Então ele estava realmente mentindo e iria sofrer mais. Pontapés nos órgãos genitais, socos no estômago, cigarros queimando o corpo, “corredor polonês”. Nada conseguiram. O capitão Albernaz augurou: “…se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço da valentia”.
De volta para a cela, frei Tito raciocinou que não queria mais continuar sofrendo. Os demônios tinham dito que todos os dominicanos presos iam passar pelo mesmo que ele, pois o primeiro interrogatório tinha sido muito fraco. Pensou que sua morte evitaria tudo isso e teria repercussão que talvez fizesse parar as torturas no Brasil. Conseguiu uma lâmina e cortou a artéria. Mas, avisados, os repressores socorreram e levaram-no prontamente ao Hospital Militar. Chamaram a atenção do médico: “doutor, este padre não pode morrer de jeito nenhum, senão estamos perdidos”.
Enquanto era tratado, os dominicanos conseguiram enviar mensagem aos seus superiores sobre o que estava acontecendo com Tito. Estes recorreram às autoridades eclesiásticas. Dom Paulo Evaristo Arns procurou a Oban, que negou estar com frei Tito Alencar. Dom Agnelo Rossi falou com o governador Abreu Sodré e encarregou dom Lucas Moreira Neves de procurar o juiz-auditor militar Nélson Guimarães, amigo de muitos anos de dom Lucas. O juiz concordou em visitar Tito no Hospital juntamente com dom Lucas com o compromisso deste nada divulgar do que visse ou ouvisse. A vida de frei Tito estava salva.
Voltou ao convívio dos companheiros e não se acomodou. Fez um relato de tudo o que passou e conseguiu mandar para fora da prisão. Ainda em 1970, foi publicado em jornais e revistas da Europa e dos Estados Unidos. Festejado como membro do grupo de heróis que suporta os horrores do inferno, mas não satisfaz ao diabo, fala disso com modéstia no citado informe: “…É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram tortura. Muitos como Schael Schreiber e Virgílio Gomes da Silva morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. (…) Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite, amanhã, a triste notícia de mais um morto sob torturas”.
Em dezembro de 1970, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) sequestrou o embaixador da Suíça, Giovanni Enrico Bucher. Em troca de sua vida, conseguiu a libertação de 70 presos políticos, incluindo na lista frei Tito Alencar. Na despedida, deixou um bilhete para o advogado e companheiro de prisão Wanderley Caixe: “…Foi motivo de grande satisfação ter convivido com você durante 12 meses no Presídio Tiradentes. Sob o signo deste herói que, infelizmente, virou nome de cárcere, reuniremos os grandes ideais que o futuro do povo brasileiro tanto anseia: a construção do socialismo. (…) Contra isso, nada vence: nem tortura nem perseguições”.
Do Chile, em 20 de fevereiro de 1971, escreveu ao seu provincial frei Domingos Maia Leite, animado e esperançoso, embora preocupado. “…Tive uma vida muito movimentada aqui no Chile, fui eleito para a Comissão de Imprensa, participei do 2º Encontro Latino-Americano em comemoração à morte de Camilo Torres. Encontro-me bem do ponto de vista físico e psicológico. (…) A “infiltração” na Colônia está crescendo. O Fleury esteve há poucos dias no Chile. Está montando seu esquema por aqui…”. Decidiu ir para a Europa.
Apesar de não ter sido aceito no Colégio Pio Brasileiro, sendo acolhido no Convento de Saint Jacques, em Paris, estava razoavelmente bem na Europa. Em 7 de dezembro de 1973, três meses após o golpe militar que derrubou Salvador Allende, no Chile, escreveu a seu colega cearense frei Daniel Ulhôa: “…Aos poucos, vou me acostumando à solidão europeia… Ainda verei a chama do espírito latino-americano brilhar bem alto… Apesar de ainda angustiado, estou cheio de esperança… Nem um só momento de minha vida, lamentei o que fiz… Estou asilado, banido e longe de minha pátria, mas estou firme e disposto a continuar a lutar, embora minha resistência psicológica tenha se reduzido bastante após os 14 meses de prisão. Iniciarei uma psicoterapia para ver se a recupero o mais breve possível”.
Infelizmente, não recuperou. A maldição de Albernaz prevaleceu. No Natal de 1973, sua irmã, Nildes, o encontrou muito deprimido. Tinha visões de Fleury lhe dando ordens, ameaçando torturar seus parentes. Mudou-se para o campo, procurou trabalhar, mas não conseguia se concentrar. Perdia os empregos. Evitava conversar com os companheiros de convento. Isolava-se. Escreveu no marcador de um livro: “É melhor morrer do que perder a vida”. Descreveu num poema que vivia “Noites de silêncio”.
No dia 10 de agosto de 1974, seu corpo foi encontrado “balançando entre o céu e a terra, sob o céu azul do verão francês”. Frei Tito se suicidou sob a copa de uma árvore. Seu corpo foi sepultado num cemitério dominicano na França e trazido para o Brasil em março de 1983. Recebido em São Paulo, após celebração solene na Catedral da Sé, conduzida por dom Paulo Evaristo Arns, seguiu para sua terra natal, Fortaleza, onde repousa e recebe muitas visitas e homenagens.
No ano de 2004, fundou-se em Fortaleza o Instituto de Educação para os Direitos Humanos Frei Tito de Alencar. Outras entidades têm honrado sua memória. Poetas têm cantado em seu louvor, entre os quais Zé Vicente, cearense, poeta, cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): “…Ao saber disto não calo/Pois garanto com certeza/Que se calar este canto/Todos verão com espanto/Que as pedras clamarão/Tito recebe mensagens/Muitos lhe prestam homenagem/É o abraço da nação/Viva o mártir brasileiro/Vivam todos os irmãos/Que passaram no braseiro/De qualquer perseguição…”.
José Levino é historiador e colaborador de A Verdade
Fontes
Batismo de Sangue, frei Betto, 13ª edição, Editora Casa Amarela, São Paulo, 2004, do qual foram extraídas todas as citações e que serviu de roteiro para o filme de mesmo nome.
AVERDADE
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