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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, janeiro 22, 2013

A neoinquisição fluminense

Por Diego Gatto

Art. 1. Fica instituído o “Programa de Resgate de Valores Morais, Sociais, éticos e Espirituais” no âmbito do Estado Rio de Janeiro. Não, você não leu errado. Este não é um trecho de lei escrita por Jânio Quadros proibindo biquínis e este artigo não trata de eventos históricos e rodapés de outrora. O assunto é novo. O ano é 2013.

A infelizmente deputada Myrian Rios (PSD-RJ) conseguiu mais uma de suas façanhas fascistóides: emplacar a tal da Lei da Moral e Bons Costumes. Sancionada pelo governador Sério Cabral, a tal prevê que dinheiro público seja destinado para “envolver diretamente a comunidade escolar, a família, lideranças comunitárias, empresas públicas e privadas, meios de comunicação, autoridades locais e estaduais e as organizações não governamentais e comunidades religiosas, por meio de atividades culturais, esportivas, literárias, mídia, entre outras, que visem a reflexão sobre a necessidade da revisão sobre os valores morais, sociais, éticos e espirituais”. O que exatamente isto significa?

O leitor pode acessar o projeto de lei, que, aliás é estranhamente curto, e observar alguns pontos interessantes. Não fosse suficiente para o escracho que nós devemos fazer o anacronismo dos termos e da proposta desta lei, em um Estado que é pretensamente laico, que ou enfurece ou põe em ataques de risos nervosos qualquer pessoa de bom senso; existem outros furos e indícios da moralidade deste projeto:

Em primeiro lugar, o texto é vago: invoca uma miríade de conceitos sem dar o mínimo lastro sobre eles. É claro que nós sabemos quais são os lastros, não somos tão ingênuos; mas para efeito legal não contam as entrelinhas e o que foi sublimado, somente o que foi escrito. Aí mora o perigo. Leis precisam ser objetivas. Quanto maior a margem interpretativa de uma lei, mais chances ela tem de servir como aparelho para manobras políticas escusas, não raro, com forte odor de inconstitucionalidade.  O referido projeto de que tratamos invoca termos tais como: moral, "bons costumes", família, violência, cidadania, espiritualidade, entre outros; mas não deixa claro a qual escola conceitual faz jus. Nós, que conhecemos Myrian Rios de outros carnavais e desde os tempos em que era devota fervorosa da Renovação Carismática,  a ala mais reacionária da “Santa Igreja”; e depois de uma conveniente conversão ao neopentecostalismo, uma "irmã fervorosa", sabemos a qual matriz axiológica que este projeto contempla: os valores teocráticos da bíblia cristã. Nós sabemos, mas não está escrito na lei.

A vacuidade da redação protocolar do projeto não deixa dúvidas: ele não foi mal redigido por uma deputada incompetente, ele foi propositalmente escrito de forma oca, justamente para que qualquer interpretação conveniente coubesse. O que podemos esperar? Cartilhas anti-gay? Defesa da “espécie humana” e da família brasileira no melhor estilo Silas Malafaia? Dinheiro público gasto com campanhas heteronormativas? Ou coisa pior: o projeto fala de convênios com entidades religiosas. Será que o Macedão vai virar fornecedor de serviços públicos? Teremos licitação para orações financiadas pelo Estado? Piadas e ironias à parte, a coisa é séria.

Filosoficamente os termos invocados precisam de um lastro. A luta dos libertários, a nossa luta, é conceitualmente pela ampliação de tais conceitos; e para nós tal projeto de lei representa um retrocesso hodierno, pois nós sabemos que ela ruma em sentido contrário aos das conquistas pelas liberdades individuais e coletivas logradas nos últimos anos.  Sabemos que o conceito de família invocado por esta lei é heteronormativo, sabemos que a moral e os “bons” costumes são os valores cristãos. É assim que vemos uma nova inquisição nascer entre nós, com o respaldo nada surpreendente do Estado. Porque existe um Estado! "Porque Estado Laico não é Estado ateu." não é o que dizem? Faz parte do jogo de poder, desde tempos romanos dividir para governar. E que exército pior de zumbis pode existir além de prosélitos conservadores prontos a acatar a decisão dos ditos "formadores de opinião" de suas respectivas instituições religiosas?

Na justificativa da lei, Myrian invoca um maniqueísmo infantil: “se perde o conceito do bom e ruim, do certo e errado. Perde-se o critério do que se pode e deve fazer ou o que não se pode”. Com o apoio do Estado, os neoinquisidores dão prosseguimento ao seu projeto: transformar as liberdades individuais, de crença e consciência em um bem Estatal, bem como a "doutrinação pela fé" (ou pelo dízimo?), em um programa governamental. Lentamente, a piada democrática começa a perder a graça quando, justificando todos os alertas dos anarquistas, mostra sua verdadeira face: uma ditadura da maioria, ao serviço dos interesses de uma minoria tão "pecadora" e "gananciosa".

Finalizando, peço para que observem o nome do segundo relator do projeto. Ainda há alguma dúvida sobre as intenções desta lei?  
*centrodosocialismo

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