A neoinquisição fluminense
Por Diego Gatto
O leitor pode acessar o projeto de lei, que, aliás é estranhamente curto, e observar alguns pontos interessantes. Não fosse suficiente para o escracho que nós devemos fazer o anacronismo dos termos e da proposta desta lei, em um Estado que é pretensamente laico, que ou enfurece ou põe em ataques de risos nervosos qualquer pessoa de bom senso; existem outros furos e indícios da moralidade deste projeto:
Art. 1. Fica instituído o “Programa de Resgate de Valores Morais,
Sociais, éticos e Espirituais” no âmbito do Estado Rio de Janeiro. Não,
você não leu errado. Este não é um trecho de lei escrita por Jânio Quadros
proibindo biquínis e este artigo não trata de eventos históricos e rodapés de
outrora. O assunto é novo. O ano é 2013.
A infelizmente deputada Myrian
Rios (PSD-RJ) conseguiu mais uma de suas façanhas fascistóides: emplacar a tal
da Lei da Moral e Bons Costumes.
Sancionada pelo governador Sério Cabral, a tal prevê que dinheiro público seja
destinado para “envolver diretamente a
comunidade escolar, a família, lideranças comunitárias, empresas públicas e
privadas, meios de comunicação, autoridades locais e estaduais e as
organizações não governamentais e comunidades religiosas, por meio de
atividades culturais, esportivas, literárias, mídia, entre outras, que visem a
reflexão sobre a necessidade da revisão sobre os valores morais, sociais,
éticos e espirituais”. O que exatamente isto significa?
O leitor pode acessar o projeto de lei, que, aliás é estranhamente curto, e observar alguns pontos interessantes. Não fosse suficiente para o escracho que nós devemos fazer o anacronismo dos termos e da proposta desta lei, em um Estado que é pretensamente laico, que ou enfurece ou põe em ataques de risos nervosos qualquer pessoa de bom senso; existem outros furos e indícios da moralidade deste projeto:
Em primeiro lugar, o texto é
vago: invoca uma miríade de conceitos sem dar o mínimo lastro sobre eles. É
claro que nós sabemos quais são os lastros, não somos tão ingênuos; mas para
efeito legal não contam as entrelinhas e o que foi sublimado, somente o que foi
escrito. Aí mora o perigo. Leis precisam ser objetivas. Quanto maior a margem
interpretativa de uma lei, mais chances ela tem de servir como aparelho para manobras políticas escusas, não raro, com forte odor de inconstitucionalidade. O referido projeto de que tratamos invoca
termos tais como: moral, "bons costumes", família, violência, cidadania,
espiritualidade, entre outros; mas não deixa claro a qual escola conceitual faz
jus. Nós, que conhecemos Myrian Rios de outros carnavais e desde os tempos em que
era devota fervorosa da Renovação Carismática, a ala mais reacionária da “Santa Igreja”; e
depois de uma conveniente conversão ao neopentecostalismo, uma "irmã fervorosa", sabemos a qual matriz
axiológica que este projeto contempla: os valores teocráticos da bíblia cristã. Nós
sabemos, mas não está escrito na lei.
A vacuidade
da redação
protocolar do projeto não deixa dúvidas: ele não foi mal redigido por
uma
deputada incompetente, ele foi propositalmente escrito de forma oca,
justamente para que qualquer interpretação conveniente coubesse. O que
podemos
esperar? Cartilhas anti-gay? Defesa da “espécie humana” e da família
brasileira
no melhor estilo Silas Malafaia? Dinheiro público gasto com campanhas
heteronormativas? Ou coisa pior: o projeto fala de convênios com
entidades
religiosas. Será que o Macedão vai virar fornecedor de serviços públicos?
Teremos licitação para orações financiadas pelo Estado? Piadas e ironias à
parte, a coisa é séria.
Filosoficamente os termos
invocados precisam de um lastro. A luta dos libertários, a nossa luta, é
conceitualmente pela ampliação de tais conceitos; e para nós tal projeto de lei
representa um retrocesso hodierno, pois nós sabemos que ela ruma em sentido
contrário aos das conquistas pelas liberdades individuais e coletivas logradas
nos últimos anos. Sabemos que o conceito
de família invocado por esta lei é heteronormativo, sabemos que a moral e os “bons”
costumes são os valores cristãos. É assim que vemos uma nova inquisição nascer
entre nós, com o respaldo nada surpreendente do Estado. Porque existe um Estado! "Porque Estado
Laico não é Estado ateu." não é o que dizem? Faz parte do jogo de
poder, desde tempos romanos dividir para governar. E que exército pior
de zumbis pode existir além de prosélitos conservadores prontos a acatar
a decisão dos ditos "formadores de opinião" de suas respectivas
instituições religiosas?
Na justificativa da lei, Myrian
invoca um maniqueísmo infantil: “se perde
o conceito do bom e ruim, do certo e errado. Perde-se o critério do que se pode
e deve fazer ou o que não se pode”. Com o apoio do Estado, os
neoinquisidores dão prosseguimento ao seu projeto: transformar as liberdades
individuais, de crença e consciência em um bem Estatal, bem como a "doutrinação pela
fé" (ou pelo dízimo?), em um programa governamental. Lentamente, a piada democrática começa a
perder a graça quando, justificando todos os alertas dos anarquistas, mostra
sua verdadeira face: uma ditadura da maioria, ao serviço dos interesses de
uma minoria tão "pecadora" e "gananciosa".
Finalizando, peço para que
observem o nome do segundo relator do projeto. Ainda há alguma dúvida sobre as
intenções desta lei?
*centrodosocialismo
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