“Eu não me arrependo do cuspe, porque eles também não se arrependem do que fizeram na ditadura”
Felipe Garcez está sendo processado pelo Clube Militar por “constrangimento ilegal”. Ele foi flagrado cuspindo em um militar que comemorava o golpe de 64. Foto: Ana Helena Tavares |
“Eu milito na área dos Direitos Humanos e, quando a gente ficou sabendo
que os militares iam festejar o golpe, eu me senti na obrigação
pessoal de estar lá e protestar. Aí, nós combinamos pelo Facebook, e
não imaginávamos que seria o que foi. Não houve organização prévia. Eu
chamo essas atividades de “Flash Móvel”, foi espontâneo: um contou pro
outro, que contou pro outro e, assim, aconteceu. Cresceu mais do que a
gente.”, relatou, em entrevista exclusiva para o “Quem tem medo da
democracia?”, o jovem de 22 anos Felipe Garcez.
Flagrado cuspindo
Garcez foi fotografado, naquele dia, cuspindo na direção de um militar
que participava da comemoração. A foto, da Agência Estado, foi
publicada, na época, no site da Veja, por Reinaldo Azevedo, que chamou
Garcez e seus colegas de “baderneiros”. O fato de o cuspe ter sido
registrado lhe rendeu um processo na Justiça, onde aparece como autor.
“Eles alegam tipificação de “constrangimento ilegal”. Também pelo
cuspe, mas não só por isso. Por todo o ato. Pelos ovos que jogaram.
Pelos xingamentos que eles alegam que tiveram. Por toda a situação, que
eles dizem que eu sou o responsável. O que é uma insanidade dizer que
eu sou o responsável. Outras pessoas estão arroladas junto, mas só
estão sendo investigadas. O Clube Militar, que foi quem pediu a
abertura de inquérito, me coloca como autor. Eu e mais quatro pessoas,
se não me engano. Alguns meus amigos. Posso citar o Ádio, Eduardo
Beniacar, Matheus Aragão, que conheço só de vista, e o Silvio Tendler
(cineasta, que nem estava presente).”
Sem arrependimentos
“A nossa idéia nunca foi ir para lá agredir eles. A nossa idéia foi
protestar mesmo. Porque é uma situação em que os caras debocham. Eles
dizem assim: ‘Não matamos comunistas, matamos porcos. Tinha que matar
mesmo. Fizemos pelo Brasil’. Eram frases ditas para a gente. É claro
que eu não queria que tivesse chegado a isso, mas eu não me arrependo
(do cuspe), porque eles também não se arrependem do que fizeram (na
ditadura). O pessoal levou fotos (dos desaparecidos políticos) e eles
(os militares) apontavam para elas e diziam: ‘Matei! Matei mesmo!’
Então, no dia que eles disserem que se arrependem disso, eu direi que
me arrependo do cuspe.”
O militar em quem Garcez foi fotografado cuspindo é o Coronel-aviador
Juarez, presidente do Ternuma, grupo de extrema-direita chamado
“Terrorismo Nunca Mais”. “É um grupo que defende a ditadura. Não é ele
quem está me processando. Eles se utilizaram do Clube Militar para
isso, mas ele está relacionado como uma das vítimas. Como também o
Coronel Batista, do Exército, e o cara que matou Lamarca (General
Cerqueira). Eles estavam todos lá e estava também a família Bolsonaro,
que é toda estranha. Muita gente cuspiu e vários deles foram cuspidos.
Eles nunca tinham passado por aquilo.”
“Ele disse que devia ter matado o meu pai”
“No Cel. Juarez eu nem cheguei a cuspir. O que eu tentei foi evitar que
ele chegasse a mim. Ele veio para me agredir. Ele disse que devia ter
matado o meu pai. Tinha um monte de gente dizendo para ele: ‘Você matou
comunistas’. E ele me disse: ‘Devia ter matado o seu pai’. Então, para
mim, foi uma reação, legítima defesa.” O pai do jovem estava presente à
entrevista e, paradoxalmente, se diz um homem de direita.
Garcez conta que não estava em casa quando a polícia levou intimação
para ele depor na 5ª DP, em 10 de Janeiro de 2013, e que se
impressionou com a forma de abordagem: “Eu senti que a própria polícia
queria me intimidar, pois não fazia sentido nenhum eles mandarem 3
viaturas para me entregar um papel. E bateram de casa em casa dos meus
vizinhos. E trataram eles mal, falando com eles de fuzil na mão. Foram
brutos. Mas, na delegacia, o inspetor de polícia que me recebeu estava
bem tranquilo, me tratou muito bem e me deixou bem à vontade.”
Um caso de política
“Ele próprio me disse: ‘o caso de vocês não é caso de polícia, é caso
de política. Até o governador já ligou para cá querendo saber que
processo é esse que envolve o Silvio Tendler.’ Então, creio que eles se
acalmaram depois da repercussão à intimação do Tendler. Porque,
segundo o inspetor que me interrogou, depois que o processo dele (do
Tendler) chegou à delegacia, até o Comando Militar do Leste, militares
da ativa, passaram a acompanhar o caso. E houve uma repercussão
nacional.”
“Nós recebemos muitas ameaças e alguém, não sei quem, mandou um e-mail
para o senador Eduardo Suplicy falando sobre essas ameaças. O senador
enviou um ofício para o ministro da Justiça. E o ministro abriu um
processo na Polícia Federal em proteção à gente. Este processo foi
anexado ao nosso, com parecer do ministro e do senador Suplicy em
defesa da gente. Então, o próprio inspetor me disse: ‘O caso de vocês é
muito preocupante. Isso deu uma merda em Brasília, estão fazendo
reuniões e acho que isso vai ser arquivado”.
“Constrangimento ilegal”
O Clube Militar processa por “constrangimento ilegal”, mas, segundo o
advogado de Felipe, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ,
uma instituição não pode processar ninguém por “constrangimento
ilegal”. Só quem pode se sentir “constrangida” é uma pessoa física.
Segundo Felipe, o advogado acredita que “o processo foi feito para
aterrorizar, porque juridicamente eles não vão conseguir nada”. “O
patrimônio do Clube não foi depredado, a instituição não foi invadida.
Os militares puderam entrar e sair livremente. Alguns alegam que (o
protesto) os atrapalhou, mas o evento ocorreu tranquilamente. Eles
ficaram lá tomando o seu coquetelzinho e chamando de ‘Revolução de
64’…”
Ao que tudo indica, o “coquetelzinho” pode se repetir em 2013, quando o
golpe completará 49 anos. “Há depoimentos dos militares, que foram
depor como vítimas, em que eles dizem que farão de novo a comemoração e
que neste ano o Comando Militar do Leste fará a segurança do Clube
Militar. A gente vai contestar isso na justiça. Porque a Dilma proibiu a
comemoração. Se a Dilma proibiu, os militares da ativa não podem se
meter nisso. Só os reformados”.
A união da esquerda
Para Garcez, o protesto de 29 de Março do ano passado “superou as
expectativas em todos os sentidos. Até na participação heterogênea.
Participaram desde o PSTU e anarquistas às alas mais de direita da
esquerda, alas mais conservadoras. Eu milito no movimento estudantil,
conheço muita gente da política e vi lá pessoas de vários partidos: PT,
PDT, PCdoB, PSOL, PSTU… Gente que não milita dentro de partido, mas
milita dentro de ONG, que também tava lá… Todo mundo misturado. Tinha
umas 400 pessoas, mas havia uma diferença para outros protestos: eram
400 militantes, 400 pessoas que tinham algum envolvimento com a causa,
algum histórico de luta. Então, era um clima diferente. Você via gente
que nunca tinha se unido para nada. A esquerda estava unida ali.”
400 é um número que hoje impressiona para manifestações no Brasil, mas
na América Latina e Europa é comum ver centenas de milhares e até mais
de um milhão de pessoas nas ruas. Por que no Brasil é diferente? Para
Garcez, “há uma alienação muito grande da juventude e isso tem a ver
com a melhoria do poder de compra. Eu faço o raciocínio de que quando o
país teoricamente melhora a juventude se aliena. O que acontece nos
países da América Latina é que os países são menores, a população é
menor.” Além disso, Felipe lembra que as ditaduras de Argentina e Chile
foram “derrubadas”. “Aqui foi feita uma concessão. Aqui é meio
mormaço, há sempre um acordão. Daí que a gente vive um refluxo no
movimento como um todo. Mas eu acho que, desde 2009, a coisa está
mudando. Eu tenho visto cada vez mais o movimento aumentar.”
“Praça de guerra”
Garcez considera que aquele evento “abriu a praça de guerra”, abrindo
caminho para outros ‘escrachos’ e ‘esculachos’ que viriam depois. “A
Comissão da Verdade foi um super avanço, mas o problema é que ela
precisava ter caráter deliberativo. Ela não pode incriminar ninguém, é
como se fosse um estudo para levantar documentos. Ela precisava poder
intimar e processar. Porque tem muito militar que assume que matou,
torturou, e a justiça não faz nada. Eu defendo julgamento e prisão,
caso condenados. Porque a ditadura não legalizou a tortura. Nunca houve
tortura legalizada no Brasil. Mesmo durante aquele período, torturar
era ilegal.”
“Como é hoje a ação da polícia nas favelas. Mas tem os ‘autos de
resistência’, aí ninguém é condenado. E, se não condenarmos os da
ditadura, o recado que a gente está dando é: façam ditadura, deem golpe
e torturem que vocês vão ser reformados e ter pomposas aposentadorias
até o fim das suas vidas. Isso está errado! Claro que há exceções, há
militares que lutaram contra o golpe e, por isso, foram cassados e
presos. Mas as novas gerações que entram para o Exército ainda são
treinadas contra a ‘ameaça vermelha’, contra o inimigo comunista. Isso
está errado! O Exército tem que defender a Pátria e não ser contra um
regime político. Eles têm uma educação arcaica.”
“O MST vindo para a cidade”
Para Garcez, “o governo é muito recuado ainda (na luta pelo
esclarecimento dos crimes da ditadura), mas é muito mais avançado do
que a gente já foi um dia. A partir dela (da Comissão da Verdade), os
militares foram para a mídia dizer que é ‘revanchismo’ e dizem que os
crimes da esquerda também têm que ser investigado. Mas não têm! Porque
não é a mesma relação. O que precisa ser investigados são os crimes de
Estado. Porque a esquerda estava combatendo uma ilegalidade, então não
houve crime, houve resistência. Vamos investigar resistência? Eu acho
que não. Então, começou-se a criar um clima de enfrentamento. Aquele
ato não inicia, ele é o ápice do enfrentamento. Deixou marcas duras.”
O Levante Popular da Juventude foi recentemente condecorado pelo
Governo Federal com o Prêmio Nacional de Direitos Humanos por promover
protestos em frente às residências e locais de trabalho de pessoas
acusadas de terem sido torturadoras durante a ditadura. O Levante,
segundo nos conta Felipe, “é um movimento social criado pelo MST, é o
MST vindo para a cidade”. Mas, para ele, os chamados ‘escrachos’, que
têm ocorrido no Brasil todo, “ultrapassaram a barreira do próprio
Levante e se tornaram uma ferramenta de combate da esquerda.”
“Escrachos”
Garcez já participou de diversos “escrachos”. Por exemplo, em frente ao
prédio do Museu da Polícia, próximo à 5ª DP, no Centro do Rio. Ali
funcionava o antigo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). A
Polícia Civil reivindica o prédio para uso comercial, enquanto os
movimentos sociais querem fazer ali um memorial da ditadura. Garcez
conta que “está também nessa luta.”
Além disso, revela ter participado de um ‘escracho’ em Niterói
direcionado ao Coronel (Alberto) Fajardo, do Exército. O ‘escracho’ foi
em dezembro do ano passado e, nesse dia, houve escrachos no Brasil
inteiro. “No Rio, ‘pegaram’ o Curió (major acusado de crimes na
guerrilha do Araguaia)”, relata Garcez que diz estar afastado desse
tipo de atividade por proteção. “Na verdade, o meu grupo político optou
por me colocar ‘na geladeira’, alegando que estou visado e posso estar
sendo vigiado.”
Seguidos de perto
A suspeita de estar sendo vigiado tem fundamento. No site “A verdade
sufocada”, mantido pelo coronel reformado Carlos Alberto Brilhante
Ustra, que é declarado pela Justiça como torturador, foram publicadas
fichas com informações de Felipe e de outros manifestantes que
participaram do ato no Clube Militar. Mas, segundo o jovem, “foi feito
um dossiê ainda mais detalhado. O inspetor que me interrogou disse até
que deve ser aberto um processo para averiguar como eles têm acesso a
essas informações. Eu trabalhei no Circo Voador, mas não tinha carteira
assinada, não há registro. E eles sabem. Eles descobriram coisas
minuciosas como o local onde um dos manifestantes trabalhou em Israel.
Nem ele lembrava. Chega a ser assustador.”
Apesar do engajamento na causa, Garcez tem uma relação longínqua com a
ditadura. “A minha mãe conta a história do meu tio-avô, que era do
Partidão (PCB), que ele se escondia na casa do meu avô, pulava janela,
mas nada muito próximo. A minha ligação com esse tema é a militância
política. Desde os meus 14 anos. Desde que eu comecei a organizar o
grêmio da escola onde eu estudava em Nova Iguaçu, Escola Estadual
Mestre Hiran, ligada à Congregação Maçônica. Então, naquela época, eu
já militava.” Depois disso, estudou no CEFET e foi fazer faculdade no
Instituto Federal do Rio de Janeiro. Produção Cultural. Agora, passou
para a UFF, também para produção cultural.
Militância política
Foi Secretário-geral da União Estadual dos Estudantes. Já se candidatou
a cargos dentro do movimento social, mas se candidatar dentro da
política partidária diz não ter vontade. “Porque eu entendo que da
forma que a gente da esquerda faz política, a pessoa se entrega. É um
missionário quase. E eu não sei se eu tenho essa disposição de dar a
minha vida para ser candidato.”
“A minha vida é a política. Vivo disso, trabalho disso, participo
disso, mas eu só seria candidato se o meu grupo político me obrigasse a
isso. Porque eu entendo que o candidato é o melhor que há para se
oferecer. Se algum dia, eu for a melhor coisa do meu grupo para ser
candidato eu serei. Mas não tenho vontade pessoal. É uma entrega muito
grande.”
Corrupção
“A sociedade é corrupta. Então, em todos os níveis do nosso sistema, em
todos os poderes, você vai ter algum nível de corrupção. O problema é
que a política hoje é muito carreirista. Eu falei que, para mim, a
política é uma entrega, mas isso é para quem é realmente de esquerda.
Porque, para quem faz política como negócio, a política é um balcão. E,
para combater essa galera que faz política como balcão, você tem que
se entregar.”
“Eu acho que a maioria das pessoas que hoje exercem cargos públicos não
conseguem mais entender a função social. A pessoa acha que o cargo é
dela. Há uma correlação de forças muito grande do empresariado com os
políticos. É a força do poder econômico. Por isso que a gente luta por
financiamento público de campanha.”
Ana Helena Tavares, editora do site “Quem tem medo da democracia?”
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