Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, dezembro 30, 2013

Empresária conta como descobriu cemitério de escravos, ao reformar casa
 
“Quando encontrei uma arcada dentária de criança fiquei assustada. Pensei em uma chacina, que alguém havia matado a própria família”
Por Flávia Villela, na Agência Brasil
Empresária encontrou cemitério de escravos em casa (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Empresária do ramo da dedetização, Ana Maria de la Merced Guimarães, nunca imaginou que a compra do imóvel na rua Pedro Ernesto, nº 36, no bairro da Gamboa, zona portuária do Rio, mudaria radicalmente sua vida, a de seu marido, Petruccio, e das três filhas. Em 1996, durante uma reforma, a família descobriu ossadas debaixo da casa. A princípio, desconfiou que fossem de cachorros, até encontrarem várias arcadas dentárias humanas.
“Quando encontrei uma arcada dentária de criança fiquei assustada. Pensei em uma chacina, que alguém havia matado a própria família. Pensei o pior. Liguei para minha advogada, que ligou para um delegado. Depois, com a cabeça fria, lembramos que a Gamboa é uma região histórica”, contou.
A casa de Merced e dezenas de outras casas do bairro haviam sido construídas por cima de um cemitério de escravos do século 17. Após pesquisas e estudos dos artefatos, descobriu-se que a maioria dos mortos enterrados eram crianças e pré-adolescentes. Por esse motivo, o cemitério ficou conhecido como Pretos Novos (criado em 1769 e extinto em 1830). Lá foram enterrados, em covas coletivas, escravos que não resistiam à longa viagem nos navios negreiros vindos da África.
“Este cemitério era conhecido por poucos, esquecido por todos. Um passado funesto, mas importantíssimo para a nossa cidade. Isto representa o Holocausto negro. Aqui embaixo estão enterradas milhares de pessoas. A maioria pré-adolescente. Isto aqui representa um crime contra a humanidade e não pode ser esquecido”, declarou Merced. Além das ossadas, também foram encontradas cerâmicas e conchas.
A notícia sobre a existência de um cemitério de escravos acabou atraindo visitantes do Brasil e de outros países interessados em saber mais sobre a história envolvendo as mortes e o local. “Passamos a abrir a casa para pesquisadores, estudantes, jornalistas, uma média de dez a 15 pessoas por mês”. Novos amigos surgiram, assim como a admiração pelos artefatos e pela história.
Em 2005, ela e o marido compraram mais dois terrenos na mesma rua, um deles se tornou a sede do Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos, fundado naquele ano por Merced, amigos e estudiosos do tema. Dezessete anos depois, Merced e o marido são responsáveis pela manutenção e promoção do instituto, que é também uma galeria de arte e um museu memorial.
Em 2011, mais uma surpresa: na busca por mapear o cemitério, arqueólogos descobriram um sambaqui, sítio pré-histórico formado pelo acúmulo de conchas, moluscos, ossos humanos e animais de mais de 3 mil anos e vestígios do primeiro encontro entre indígenas Tupinambás e portugueses que aqui chegaram pela primeira vez.
A dedicação à causa custou à família sacrifícios que emocionam Merced até hoje. “Fomos proibidos de fazer a obra e, em 1998, tivemos que sair correndo da casa, que ameaçava desabar por causa das escavações e das chuvas. Minhas filhas, na época adolescentes, tiveram que morar em um abrigo na nossa empresa até 2001”, contou entre lágrimas. “Isso ficou nas nossas mãos sem ninguém assumir esta responsabilidade”.
Hoje, o local também conta com um núcleo de pesquisa e oficinas de história sobre os pretos novos. Em 2012, mais de mil pessoas participaram das atividades promovidas pelo núcleo. A Companhia de Desenvolvimento Urbano e Portuário da prefeitura contribui com um pequeno aporte para cobrir os gastos com conta de luz, água e limpeza. A maior parte das receitas vem de doações e do bolso da família. A manutenção das janelas arqueológicas e produção de folhetos explicativos também são de responsabilidade da prefeitura, mas quem cuida e mantém aberto o lugar é Merced e o marido.
*RevistaForum

Nenhum comentário:

Postar um comentário