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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, julho 20, 2011

Cristina e Dilma

Dilma Rousseff e Cristina Kirchner têm muitas coisas em comum. Algumas são grandes e significativas, outras parecem pequenas e irrelevantes. Mas não são.
Entre várias coisas em comum e algumas diferenças, Argentina e Brasil compartilham, hoje, uma característica relevante de seu sistema político: os dois países são governados por mulheres, ambas eleitas para dar continuidade a administrações populares.
Cristina Kirchner e Dilma Rousseff já participavam dos governos anteriores, cada uma à sua maneira. A brasileira era a principal ministra e peça fundamental do governo Lula. Sua colega argentina, a esposa de Nestor Kirchner, que a escolheu como sucessora em 2007, depois de avaliar que as perspectivas de sua própria reeleição eram incertas (fora os problemas de saúde pelos quais passava e que acabaram por levar a seu precoce falecimento em 2010).
Cristina, como Dilma, é a primeira mulher eleita presidente de seu país. Mas não é a primeira a ter papel central no governo.
Contrariando a modernidade da cultura argentina em tantas dimensões (arte, literatura, ciência, humanidades, etc.), Cristina é a terceira esposa de um líder político a ter essa função no país. Eva e Isabel, suas duas antecessoras, foram casadas com Juan Domingo Perón.
Evita nunca teve cargo no governo (salvo a Presidência da Fundação Eva Perón) e morreu (em 1952) sem disputar a vaga de vice-presidente na chapa encabeçada pelo marido na eleição de 1951, apesar dos apelos das bases peronistas. Mas foi a figura mais decisiva da vida política de seu país por um largo período, sem a qual Perón não teria se tornado quem foi. Isabelita é que foi candidata a vice de Perón, na sua volta à Argentina em 1973, e o sucedeu quando ele morreu. Ficou, no entanto, menos de dois anos no poder, sendo deposta por um golpe militar.
Embora Cristina tivesse carreira política própria (pois tinha sido o equivalente a deputada estadual e a deputada federal por sua província, assim como senadora por três mandatos), ela muito dificilmente chegaria à Presidência da Argentina se não fosse casada com Nestor. Seja na eleição, no governo e até morrer, ele era bem mais que o "primeiro-cavalheiro" do país.
Embora alguns vejam analogias entre ela e Dilma nesse aspecto, argumentando que Lula seria equivalente a Nestor Kirchner no papel de "inventor" da candidatura da brasileira e "tutor" de seu governo, a ausência de qualquer vínculo familiar e não político entre eles é mais decisiva. O que é acessório na relação entre Lula e Dilma (a diferença de gênero) é essencial na relação marido/mulher que existia entre Nestor e Cristina.
Ambas têm muitas coisas em comum. Algumas são grandes e significativas, outras parecem pequenas e irrelevantes. Mas não são.
As duas gostam, por exemplo, de ser chamadas "presidentas". Mas externaram a preferência de maneiras completamente distintas.
Ainda na campanha, Cristina deixou mudos seus simpatizantes quando interrompeu um comício em que a palavra de ordem "Cristina presidente" era entoada por milhares de pessoas. Enraivecida, deixou claro que considerava a expressão uma manifestação de machismo. Com o dedo em riste, disse a todos que teriam que se acostumar com a nova forma e repetiu "presidenta" esticando a pronúncia do "a" final, como um mantra: "presidentaaa".
Consta que, nos primeiros tempos na Casa Rosada, seu cerimonial devolveu centenas de correspondências endereçadas com a grafia que repudiava. Nas entrevistas, não responde se for tratada como "presidente".
Aqui, a mídia procura ridicularizar quem faz como Dilma pede. Que não é qualquer atentado ao vernáculo: todos os principais dicionários registram "presidenta". É por pura antipatia que nossos jornais insistem em lhe negar o direito de escolher o tratamento.
Cristina, face à permanente intransigência da grande imprensa contra seu governo, tem respondido com retaliações diretas e indiretas. A Ley de Medios que seu governo propôs (e que o Parlamento aprovou por larga maioria) procura romper os oligopólios de comunicação e franquear o acesso de entes públicos e comunitários à radiodifusão.
Há quem diga que seria bom para a Argentina se Cristina aprendesse algumas coisas com Dilma (a educação e a paciência, por exemplo). Mas a recíproca talvez valha: e se Dilma tivesse mais de Cristina, o que diria muita gente por aqui?
Marcos Coimbra, Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
*comtextolivre

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