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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, junho 16, 2012

Coisas que os brancos apreciam: a 135ª intervenção humanitária


11/4/2012, Marc Michael*, Jadaliyya em: Stuff White People Like n. 135 Humanitarian Intervention
15/6/2012  Marc Michael*, Conflicts Forum em: Stuff White People Like n. 135 Humanitarian Intervention  
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Em geral entendo-me bem com brancos. Para começar, fui criado em país de brancos. Alguns dos meus melhores amigos são brancos. Na minha longa história de amizade com brancos, aprendi uma coisa: se você quer que seus amigos brancos continuem a ser seus amigos, é preciso seguir algumas regras sacrossantas, dentre as quais a principal é: não falar mal das coisas que os brancos apreciam. Para os que não estejam habituados a esse cânone, há na internet uma página bem útil, que leva exatamente esse nome: “Coisas que os brancos apreciam. Embora já tenham praticamente esgotado o conceito, em verbetes que cobrem questões variadíssimas, que vão das TED Conferences ao Campeonato de Frescobol e à gastronomia asiática Fusion, falta lá uma importantíssima questão, que, sim, é coisa que os brancos apreciam: intervenção militar humanitária. Aqui, tento remediar essa lamentável omissão.
Intervenção humanitária na Líbia
Ao abordar amigos brancos em potencial, boa dica para quebrar o gelo é alguma frase curta sobre como resolver a crise du jour do Terceiro Mundo. Mas a intervenção militar humanitária, por mais que seja hobby exclusivo de brancos, também é questão espinhosa, difícil de manejar, porque implica conhecer a fundo todos os complexos códigos conversacionais, comparáveis às complexidades do croquet ou do bridge.
Na conversa que sempre se segue, evite manifestar qualquer dúvida clara sobre o valor ou as intenções da intervenção humanitária e de sua prima pobre, menos militarizada, a ajuda humanitária. “Intervenção” sempre é, pela própria natureza, nobre. Exclui necessariamente qualquer tipo de interesse financeiro ou geoestratégico. E mesmo que adiante, no processo, seja impossível não ver esses interesses, não comprometem nem deslegitimam a empreitada. São detalhes que ensinam que tudo sempre pode ser melhorado. Discordar disso, por pouca e superficial que seja a discordância, é o caminho mais curto para que seus amigos e conhecidos brancos ponham-se a falar mal de você pelas costas (teórico conspiracionista sem-noção); dependendo de o quanto você discorde, falam também na sua cara. Então, seja a favor de intervenção humanitária.
Intervenção humanitária na África
Diga você o que disser, a escolha da região do mundo que, em sua opinião, mais mereça intervenção humanitária, sempre revelará muito sobre o seu caráter. Por exemplo, se você recomendar intervenção humanitária na Palestina, mostrará personalidade com tendências tradicionalistas, limítrofe, quase orientalista. Mas se recomendar que se faça intervenção humanitária na Síria, você é do tipo mais Kosovo-intervencionista sensível. Nesse caso, você teme que se repita o massacre de Srebrenica. Por sua vez, se você manifestar preocupação com as crianças-soldados na África, estará dizendo aos brancos potencialmente seus amigos que você não só é extremamente devotado à felicidade dos condenados da Terra, mas, também, que é bem informado e sabe das coisas sobre partes do mundo que raramente aparecem no radar da empresa-imprensa de infoentretenimento.
Cidade na Síria após intervenção humanitária dos "rebeldes" árabes
Nessa confusão, os calouros aspirantes a amigos de brancos sempre erram numa coisa: apoiam indiscriminadamente todas as intervenções humanitárias, todas, sem diferença. Errado. É indispensável manifestar preferências, opinião, bom gosto, nessas questões sensíveis. Algumas intervenções são boas por questões geotopológicas, de terreno – por exemplo: planícies e desertos são bons cenários para intervenção humanitária, como na Líbia; a uniformidade étnica também, porque alta diversidade de etnias pode facilmente levar a guerra civil, como no Iraque; e os brancos são pacifistas. Qualquer outra linha de seleção de preferências a favor de intervenção humanitária criará problemas para seus amigos brancos, que descartarão suas preferências e você em pessoa, como sujeito sem serventia prática. Por exemplo: países ricos em petróleo, com governos que mantêm os interesses dos brancos sempre bem junto ao coração, como os Emirados Árabes Unidos ou a Arábia Saudita, absolutamente não são caso de intervenção humanitária; tampouco as colônias de colonizadores brancos contemporâneos, como Israel, onde o governo pensa que democracia seja modelo recém-inventado de arma de destruição em massa.
Com a “primavera árabe” no cardápio, o ápice do bom gosto branco sofisticado esse ano é introduzir na conversa a noção de “tipos de intervenção”. Embora para alguns o tópico exija trabalhosa pesquisa em blogs especializados e assinatura da revista The Economist, explicar com riqueza de detalhes o tipo de intervenção que pareça a você mais apropriado para cada contexto em torno do qual role o papo revela personalidade sutil, afinada com as nuances microscópicas da arte de matar não brancos, bem longe de casa. Os ataques devem ser preventivos? Ou o melhor será esperar que se acumulem certo número de cadáveres de inocentes oprimidos não brancos, antes de mandar para lá os Marines

Decidida a questão da tipologia, é preciso escolher entre (a) intervenções que visam a cercar defensivamente algumas áreas específicas de específico interesse para os brancos, e optar por ataques cirúrgicos que destroem a capacidade de fogo do inimigo, capacidade de fogo a qual algum governo branco e/ou empresa branca vendeu ao hoje inimigo, semana passada; e (b) intervenção militar física, direta, a qual, contudo, pode implicar que seu atual presidente não continue nem atual nem presidente eleito para segundo mandato. Há a alternativa, sim, de elogiar as virtudes pouco ortodoxas de sanções econômicas, as quais asseguram que crianças nativas morram morte digna, de fome, e tenham a privacidade perfeitamente preservada contra a superexposição na imprensa internacional.
Agora então, que você já incluiu com sucesso seus novos amigos brancos no Facebook, você começa a pensar que pode parar de falar sobre o significado de matar gente que você não conhece em terras sobre as quais sabe pouco – chamando o morticínio de “salvar” os carinhas. Errado.
Defender o seu voto e o político que você ajudou a eleger saiu de moda. Mas entraram em moda a intervenção no ciberespaço e a intervenção do ciberespaço nos jantares. O ativismo digital substituiu os bilhetes e os telefonemas, como arma preferencial, no arsenal disponível contra a injustiça global. Quase sempre se trata de ter assistido a vídeos militantes em YouTube e recomendá-los, para aprofundar a conscientização dos seus amigos e deputados e senadores brancos; mas muitos “gostei” (“curtir”) no Facebook valem praticamente a mesma coisa, na ciberguerrilha contra a consciência-zero.
Para os que se sintam um pouco limitados pela falta de alternativas, o ativismo digital afinal permite que os brancos ponham seu dinheiro onde põem os debates. Depois dos momentos “adote um órfão não branco faminto” e/ou “adote uma especiezinha ameaçada”, os e-revolucionários brancos veem ampliarem-se consideravelmente as suas perspectivas de justiça global, com o momento “adote um movimento revolucionário”.
Hillary Clinton
Filha bastarda do compromisso de H. Clinton com os direitos humanos à comunicação e com o movimento “adote um monge tibetano”, a internet permite hoje que os cidadãos brancos conscientes do mundo ganhem amigos ou conhecidos – como presente de aniversário ou de Natal, por exemplo – e “adicionem” um ativista revolucionário sírio: basta oferecer-se para pagar, por exemplo, a conta telefônica do ativista, por um mês ou dois. Infelizmente já não é possível adotar “combatentes da liberdade” árabes, exceto no caso dos carcereiros da prisão da baía de Guantánamo.
Coisas que os brancos não apreciam muito 
Nenhum guia decente de etiqueta branca que trate de o que dizer sobre “intervenção humanitária” estará completo, se não mencionar a regra central, pétrea, absoluta, cuja violação põe em risco até as mais sinceras amizades brancas: nunca, never, em nenhum caso pergunte a um amigo branco por que a “intervenção humanitária” é hobby exclusiva e especificamente de brancos.
Essa pergunta é tabu. Pode levar à morte súbita de um, dois, três, quatro ou cinco mitos fundacionais: o mito do privilégio dos brancos, o mito do “sofrimento do colonizador”, o mito da supremacia dos brancos, o mito de que os brancos não são racistas e o mito de que nunca perdem a compostura branca.
Drone RQ-170 (jato)
Comprova-se facilmente, se você gosta de experimentos perigosos. Tente perguntar a amigo branco se ele consideraria inteligente recomendar ataque preventivo, pela ONU, cirúrgico, com drones, contra as fábricas que produziam armas para os EUA, na primavera de 2003; para tentar evitar, por exemplo, que morressem um milhão de iraquianos, na guerra do Iraque. Não se surpreenda se seu amigo branco puser-se imediatamente a listar diferenças entre Bush e Saddam ou Gaddafi: Bush até talvez fosse meio dedo-nervoso no gatilho, mas jamais desceria a ponto de massacrar o próprio povo, o que só gerentões não brancos fazem. Questão de estilo. Nas democracias corporativas brancas ocidentais, governos provêm serviços (exceto eutanásia) ao próprio povo. Governo que mate manifestantes pacíficos do próprio povo é tão impossível quanto acionistas do Wal-Mart abrirem fogo de verdade contra fregueses, entrincheirados atrás do balcão de informações ou do setor de pães; seria absurdo em termos de marketing & Relações Públicas. Em liberalês, a língua que só os liberais brancos falam, o privilégio dos brancos implica necessariamente governo dotado de altos saberes de senso comum gerencial.
Há cerca de 12 anos, o Sul Global deu-se conta de que os brancos padecem de um plus de privilégio que os impede de ver com lucidez as próprias fraquezas. Por isso, emitiram Declaração assinada por 133 países, aproximadamente dois terços do globo e 100% do mundo não branco, em que gentilmente explicam que matar o próprio povo e lutar pela liderança política no próprio país são ações interpretadas em geral como política soberana, e que interferir nesse tipo de decisão não é exatamente o que se considera legal. Os brancos imediatamente esqueceram o lembrete.
Bernard Kouchner
O ministro francês de Relações Exteriores, Bernard Kouchner, por exemplo, lançou campanha em prol do “referendo putativo” [no Brasil, se diz mais frequentemente, “suposto”, que é sinônimo de “putativo” [1]: “suposto bandido”, “suposto ladrão”, “suposto kurrupto”, “suposta lei”, “suposto honesto”, “suposto ético”, mas nunca “suposto jornalista”, “suposto jornalismo”, “suposta fonte”, “suposta notícia” ou “suposto fato” (NTs)].
A intervenção humanitária passava a ser justa, se os brancos imaginassem os iraquianos a dizerem “sim” ao bombardeio-detonação do próprio país até ser convertido em amontoado de ruínas, num referendo apenas suposto, hipotético, jamais perguntado – cujo fundamento é o hino dos necrófilos: “Quem cala consente”. Assim ficou evidente que não se tratava propriamente de os brancos sentirem-se com algum “direito à intervenção humanitária”, o que seria uma modalidade de privilégio, mas, mais, de que se autoinvestiam num “dever de proteger” os pobres do mundo.
Esse desenlace nos devolve aos bons velhos tempos coloniais, quando o “dever de proteger”, “o peso sob o qual arca o colonizador branco” eram muito regularmente invocados para apoiar intervenções militares. Só não se entende por quê. Por que o peso sob o qual arca o colonizador branco é tão branco?
É sabedoria corrente no norte, que os brancos são geneticamente predispostos à empatia, à generosidade. Que cuidam melhor dos que oprimem. Não demora, e um cientista branco descobrirá que os brancos têm um gene que os capacita melhor para a solidariedade, para a compaixão pelos que sofrem, do que se lê todos os dias na primeira página do New York Times. Contra esse argumento genético, o melhor é tratar a coisa como fenômeno de fundamento histórico, uma especificidade cultural. O “dever de proteger” que incumbe aos de pele branca explica-se como se explica a “missão civilizatória” tão cara ao projeto colonial: os brancos governam melhor.
Essa forma de supremacia branca contemporânea sofre ligeira distorção na imaginação, o suficiente para que não se a entenda completamente, mas ainda assim é aproveitável como ferramenta de análise: governos brancos não massacram o próprio povo; as democracias (vale dizer: as políticas de brancos, por brancos, para brancos) não guerreiam entre elas.
O impecável silogismo segundo o qual os brancos fantasiam a própria supremacia e o peso que carregam às costas reza que os brancos têm um dever de proteger a vida, porque protegem melhor. De reservas naturais a protetorados, de zebras a tuaregues, de desastres ecológicos a poços de petróleo, a cantoria humanitária é sempre a mesma:
1) Todos os seres humanos têm igual direito à vida;
2) Governos brancos preservam melhor a vida;
3) Ergo, só os brancos merecem governar.
No frigir dos ovos, a intervenção humanitária estipula que há um direito humano à vida, e ninguém tem melhores atributos que os brancos para tomar conta da vida, essa preciosíssima mercadoria. Os brancos mantêm a vida viva por mais tempo.
A discussão não tem fim, porque, se se aceita que os brancos são naturalmente mais bem dotados para fazer o management da vida; e que a soberania dos estados-nação nada vale, se se trata de salvar vidas... não há qualquer imperativo moral que obrigue a resistir contra a volta da administração colonial sobre os interesses dos nativos. Afinal de contas, as estatísticas estão aí, a demonstrar sem sombra de dúvida que governos brancos cuidam muito melhor da vida dos respectivos cidadãos brancos – e daí, portanto, que tenham de assumir o dever de cuidar, logo, de vez, do resto dos cidadãos do resto do mundo.
O tabu que cerca essa questão – e razão pela qual você não pode perguntar a amigo branco por que a intervenção humanitária é hobby branco e de brancos – resulta desse fato tantas vezes encoberto: só as guerras e as intervenções humanitárias tocam bem fundo nas gozosas raízes dos sentimentos suprematistas dos brancos.
Conclusão: O que fazer?
Assim sendo, pois: você deseja salvar o mundo e ter amigos brancos, mas sabe que assistir a vídeos de YouTube e participar de quermesses de venda de bolo para fazer finanças para comprar armas para o governo de Uganda em luta contra o Exército da Resistência de Deus  [orig. Lord's Resistance Army (LRA)] não bastará.
Soldados do Exército de Resistência de Deus (Lord's Resistance Army) 
Você teme Deus e teme guerras, e já começa a desconfiar de que seu governo está mais interessado em resgatar banqueiros que fábricas de armas. Você deseja participar e promover justiça para todos, mas você não é branco perfeito, branco puro. E, mais importante, você já está de saco totalmente cheio de envolver-se apaixonadamente em invasões de países (qualquer um) árabes, tanto quanto já morre de tédio ao ver seu time favorito vencer mais um jogo decisivo do campeonato universal de futebol americano.
Temos então a solução perfeita para o seu caso: seja você mesmo a mudança. Passe a mão numa metralhadora e embarque para a Síria. Você consegue. Você estará arriscando a própria vida por ideais nos quais você não sabe se acredita muito. Mas... pense pelo lado bom. Você será a matéria-prima que os brancos mais apreciam: sem braços nem pernas. E livre. 

Notas de rodapé
*Marc Michael é sociólogo e vive no Cairo. Está concluindo sua tese de PhD na Universidade de Cambridge. Escreve sobre saúde pública, finanças, direito, política internacional e desenvolvimento
[1] Putativo. Adj. Acepções: 1) falsamente ou erradamente atribuído a (alguém ou algo); supositício, suposto (Ex.: filho putativo). 2) Rubrica: termo jurídico. Diz-se daquilo que, embora ilegítimo, é objeto de suposição de legitimidade, fundada na boa-fé (ou não) (Ex.: casamento putativo).

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