Coisas que os brancos apreciam: a 135ª intervenção humanitária
11/4/2012, Marc Michael*,
Jadaliyya em: “Stuff White People Like n. 135 Humanitarian
Intervention”
15/6/2012 Marc Michael*, Conflicts Forum em: “Stuff White People Like n. 135 Humanitarian
Intervention”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Em geral entendo-me bem com
brancos. Para começar, fui criado em país de brancos. Alguns dos meus melhores
amigos são brancos. Na minha longa história de amizade com brancos, aprendi uma
coisa: se você quer que seus amigos brancos continuem a ser seus amigos, é
preciso seguir algumas regras sacrossantas, dentre as quais a principal é: não
falar mal das coisas que os brancos apreciam. Para os que não estejam habituados
a esse cânone, há na internet uma página bem útil, que leva exatamente esse
nome: “Coisas que os brancos
apreciam”.
Embora já tenham praticamente esgotado o conceito, em verbetes que cobrem
questões variadíssimas, que vão das TED
Conferences ao Campeonato de Frescobol e à
gastronomia asiática Fusion, falta lá uma importantíssima questão, que,
sim, é coisa que os brancos apreciam: intervenção militar humanitária. Aqui,
tento remediar essa lamentável omissão.
Intervenção humanitária na Líbia |
Ao
abordar amigos brancos em potencial, boa dica para quebrar o gelo é alguma frase
curta sobre como resolver a crise du jour do Terceiro Mundo. Mas a
intervenção militar humanitária, por mais que seja hobby exclusivo de
brancos, também é questão espinhosa, difícil de manejar, porque implica conhecer
a fundo todos os complexos códigos conversacionais, comparáveis às complexidades
do croquet ou do bridge.
Na
conversa que sempre se segue, evite manifestar qualquer dúvida clara sobre o
valor ou as intenções da intervenção humanitária e de sua prima pobre, menos
militarizada, a ajuda humanitária. “Intervenção” sempre é, pela própria
natureza, nobre. Exclui necessariamente qualquer tipo de interesse financeiro ou
geoestratégico. E mesmo que adiante, no processo, seja impossível não ver esses
interesses, não comprometem nem deslegitimam a empreitada. São detalhes que
ensinam que tudo sempre pode ser melhorado. Discordar disso, por pouca e
superficial que seja a discordância, é o caminho mais curto para que seus amigos
e conhecidos brancos ponham-se a falar mal de você pelas costas (teórico
conspiracionista sem-noção); dependendo de o quanto você discorde, falam também
na sua cara. Então, seja a favor de intervenção humanitária.
Intervenção humanitária na África |
Diga
você o que disser, a escolha da região do mundo que, em sua opinião, mais mereça
intervenção humanitária, sempre revelará muito sobre o seu caráter. Por exemplo,
se você recomendar intervenção humanitária na Palestina, mostrará personalidade
com tendências tradicionalistas, limítrofe, quase orientalista. Mas se
recomendar que se faça intervenção humanitária na Síria, você é do tipo mais
Kosovo-intervencionista sensível. Nesse caso, você teme que se repita o massacre
de Srebrenica. Por sua vez, se você manifestar preocupação com as
crianças-soldados na África, estará dizendo aos brancos potencialmente seus
amigos que você não só é extremamente devotado à felicidade dos condenados da
Terra, mas, também, que é bem informado e sabe das coisas sobre partes do mundo
que raramente aparecem no radar da empresa-imprensa de infoentretenimento.
Cidade na Síria após intervenção humanitária dos "rebeldes" árabes |
Nessa
confusão, os calouros aspirantes a amigos de brancos sempre erram numa coisa:
apoiam indiscriminadamente todas as intervenções humanitárias, todas, sem
diferença. Errado. É indispensável manifestar preferências, opinião, bom gosto,
nessas questões sensíveis. Algumas intervenções são boas por questões
geotopológicas, de terreno – por exemplo: planícies e desertos são bons cenários
para intervenção humanitária, como na Líbia; a uniformidade étnica também,
porque alta diversidade de etnias pode facilmente levar a guerra civil, como no
Iraque; e os brancos são pacifistas. Qualquer outra linha de seleção de
preferências a favor de intervenção humanitária criará problemas para seus
amigos brancos, que descartarão suas preferências e você em pessoa, como sujeito
sem serventia prática. Por exemplo: países ricos em petróleo, com governos que
mantêm os interesses dos brancos sempre bem junto ao coração, como os Emirados
Árabes Unidos ou a Arábia Saudita, absolutamente não são caso de intervenção
humanitária; tampouco as colônias de colonizadores brancos contemporâneos, como
Israel, onde o governo pensa que democracia seja modelo recém-inventado de arma
de destruição em massa.
Com
a “primavera árabe” no cardápio, o ápice do bom gosto branco sofisticado esse
ano é introduzir na conversa a noção de “tipos de intervenção”. Embora para
alguns o tópico exija trabalhosa pesquisa em blogs especializados e assinatura
da revista The Economist, explicar com riqueza de detalhes o tipo de
intervenção que pareça a você mais apropriado para cada contexto em torno do
qual role o papo revela personalidade sutil, afinada com as nuances
microscópicas da arte de matar não brancos, bem longe de casa. Os ataques devem
ser preventivos? Ou o melhor será esperar que se acumulem certo número de
cadáveres de inocentes oprimidos não brancos, antes de mandar para lá os
Marines?
Decidida
a questão da tipologia, é preciso escolher entre (a) intervenções que visam a
cercar defensivamente algumas áreas específicas de específico interesse para os
brancos, e optar por ataques cirúrgicos que destroem a capacidade de fogo do
inimigo, capacidade de fogo a qual algum governo branco e/ou empresa branca
vendeu ao hoje inimigo, semana passada; e (b) intervenção militar física,
direta, a qual, contudo, pode implicar que seu atual presidente não continue nem
atual nem presidente eleito para segundo mandato. Há a alternativa, sim, de
elogiar as virtudes pouco ortodoxas de sanções econômicas, as quais asseguram
que crianças nativas morram morte digna, de fome, e tenham a privacidade
perfeitamente preservada contra a superexposição na imprensa internacional.
Agora
então, que você já incluiu com sucesso seus novos amigos brancos no Facebook, você começa a pensar que pode
parar de falar sobre o significado de matar gente que você não conhece em terras
sobre as quais sabe pouco – chamando o morticínio de “salvar” os carinhas.
Errado.
Defender
o seu voto e o político que você ajudou a eleger saiu de moda. Mas entraram em
moda a intervenção no ciberespaço e a intervenção do ciberespaço nos jantares. O
ativismo digital substituiu os bilhetes e os telefonemas, como arma
preferencial, no arsenal disponível contra a injustiça global. Quase sempre se
trata de ter assistido a vídeos militantes em YouTube e recomendá-los, para aprofundar
a conscientização dos seus amigos e deputados e senadores brancos; mas muitos
“gostei” (“curtir”) no Facebook valem
praticamente a mesma coisa, na ciberguerrilha contra a
consciência-zero.
Para
os que se sintam um pouco limitados pela falta de alternativas, o ativismo
digital afinal permite que os brancos ponham seu dinheiro onde põem os debates.
Depois dos momentos “adote um órfão não branco faminto” e/ou “adote uma
especiezinha ameaçada”, os e-revolucionários brancos veem ampliarem-se
consideravelmente as suas perspectivas de justiça global, com o momento “adote
um movimento revolucionário”.
Hillary Clinton |
Filha
bastarda do compromisso de H. Clinton com os direitos humanos à comunicação e
com o movimento “adote um monge tibetano”, a internet permite hoje que os
cidadãos brancos conscientes do mundo ganhem amigos ou conhecidos – como
presente de aniversário ou de Natal, por exemplo – e “adicionem” um ativista
revolucionário sírio: basta oferecer-se para pagar, por exemplo, a conta
telefônica do ativista, por um mês ou dois. Infelizmente já não é possível
adotar “combatentes da liberdade” árabes, exceto no caso dos carcereiros da
prisão da baía de Guantánamo.
Coisas
que os brancos não apreciam muito
Nenhum
guia decente de etiqueta branca que trate de o que dizer sobre “intervenção
humanitária” estará completo, se não mencionar a regra central, pétrea,
absoluta, cuja violação põe em risco até as mais sinceras amizades brancas:
nunca, never, em nenhum caso pergunte a um amigo branco por que a
“intervenção humanitária” é hobby exclusiva e especificamente de brancos.
Essa
pergunta é tabu. Pode levar à morte súbita de um, dois, três, quatro ou cinco
mitos fundacionais: o mito do privilégio dos brancos, o mito do “sofrimento do
colonizador”, o mito da supremacia dos brancos, o mito de que os brancos não são
racistas e o mito de que nunca perdem a compostura branca.
Drone RQ-170 (jato) |
Comprova-se
facilmente, se você gosta de experimentos perigosos. Tente perguntar a amigo
branco se ele consideraria inteligente recomendar ataque preventivo, pela ONU,
cirúrgico, com drones, contra as fábricas que produziam armas para os
EUA, na primavera de 2003; para tentar evitar, por exemplo, que morressem um
milhão de iraquianos, na guerra do Iraque. Não se surpreenda se seu amigo branco
puser-se imediatamente a listar diferenças entre Bush e Saddam ou Gaddafi: Bush
até talvez fosse meio dedo-nervoso no gatilho, mas jamais desceria a ponto de
massacrar o próprio povo, o que só gerentões não brancos fazem. Questão de
estilo. Nas democracias corporativas brancas ocidentais, governos provêm
serviços (exceto eutanásia) ao próprio povo. Governo que mate manifestantes
pacíficos do próprio povo é tão impossível quanto acionistas do Wal-Mart abrirem fogo de verdade contra
fregueses, entrincheirados atrás do balcão de informações ou do setor de pães;
seria absurdo em termos de marketing & Relações Públicas. Em liberalês, a língua que só os liberais
brancos falam, o privilégio dos brancos implica necessariamente governo dotado
de altos saberes de senso comum gerencial.
Há
cerca de 12 anos, o Sul Global deu-se conta de que os brancos padecem de um
plus de privilégio que os impede de ver com lucidez as próprias
fraquezas. Por isso, emitiram Declaração assinada por 133 países,
aproximadamente dois terços do globo e 100% do mundo não branco, em que
gentilmente explicam que matar o próprio povo e lutar pela liderança política no
próprio país são ações interpretadas em geral como política soberana, e que
interferir nesse tipo de decisão não é exatamente o que se considera legal. Os
brancos imediatamente esqueceram o lembrete.
Bernard Kouchner |
O
ministro francês de Relações Exteriores, Bernard Kouchner, por exemplo, lançou
campanha em prol do “referendo putativo” [no Brasil, se diz mais frequentemente,
“suposto”, que é sinônimo de “putativo” [1]: “suposto bandido”, “suposto ladrão”,
“suposto kurrupto”, “suposta lei”, “suposto honesto”, “suposto ético”, mas nunca
“suposto jornalista”, “suposto jornalismo”, “suposta fonte”, “suposta notícia”
ou “suposto fato” (NTs)].
A
intervenção humanitária passava a ser justa, se os brancos imaginassem os
iraquianos a dizerem “sim” ao bombardeio-detonação do próprio país até ser
convertido em amontoado de ruínas, num referendo apenas suposto, hipotético,
jamais perguntado – cujo fundamento é o hino dos necrófilos: “Quem cala
consente”. Assim ficou evidente que não se tratava propriamente de os brancos
sentirem-se com algum “direito à intervenção humanitária”, o que seria uma
modalidade de privilégio, mas, mais, de que se autoinvestiam num “dever de
proteger” os pobres do mundo.
Esse
desenlace nos devolve aos bons velhos tempos coloniais, quando o “dever de
proteger”, “o peso sob o qual arca o colonizador branco” eram muito regularmente
invocados para apoiar intervenções militares. Só não se entende por quê. Por que
o peso sob o qual arca o colonizador branco é tão branco?
É
sabedoria corrente no norte, que os brancos são geneticamente predispostos à
empatia, à generosidade. Que cuidam melhor dos que oprimem. Não demora, e um
cientista branco descobrirá que os brancos têm um gene que os capacita melhor
para a solidariedade, para a compaixão pelos que sofrem, do que se lê todos os
dias na primeira página do New York Times. Contra esse argumento
genético, o melhor é tratar a coisa como fenômeno de fundamento histórico, uma
especificidade cultural. O “dever de proteger” que incumbe aos de pele branca
explica-se como se explica a “missão civilizatória” tão cara ao projeto
colonial: os brancos governam melhor.
Essa
forma de supremacia branca contemporânea sofre ligeira distorção na imaginação,
o suficiente para que não se a entenda completamente, mas ainda assim é
aproveitável como ferramenta de análise: governos brancos não massacram o
próprio povo; as democracias (vale dizer: as políticas de brancos, por brancos,
para brancos) não guerreiam entre elas.
O
impecável silogismo segundo o qual os brancos fantasiam a própria supremacia e o
peso que carregam às costas reza que os brancos têm um dever de proteger a vida,
porque protegem melhor. De reservas naturais a protetorados, de zebras a
tuaregues, de desastres ecológicos a poços de petróleo, a cantoria humanitária é
sempre a mesma:
1)
Todos os seres humanos têm igual direito à vida;
2)
Governos brancos preservam melhor a vida;
3) Ergo,
só os brancos merecem governar.
No
frigir dos ovos, a intervenção humanitária estipula que há um direito humano à
vida, e ninguém tem melhores atributos que os brancos para tomar conta da vida,
essa preciosíssima mercadoria. Os brancos mantêm a vida viva por mais tempo.
A
discussão não tem fim, porque, se se aceita que os brancos são naturalmente mais
bem dotados para fazer o management da vida; e que a soberania dos
estados-nação nada vale, se se trata de salvar vidas... não há qualquer
imperativo moral que obrigue a resistir contra a volta da administração colonial
sobre os interesses dos nativos. Afinal de contas, as estatísticas estão aí, a
demonstrar sem sombra de dúvida que governos brancos cuidam muito melhor da vida
dos respectivos cidadãos brancos – e daí, portanto, que tenham de assumir o
dever de cuidar, logo, de vez, do resto dos cidadãos do resto do mundo.
O
tabu que cerca essa questão – e razão pela qual você não pode perguntar a amigo
branco por que a intervenção humanitária é hobby branco e de brancos –
resulta desse fato tantas vezes encoberto: só as guerras e as intervenções
humanitárias tocam bem fundo nas gozosas raízes dos sentimentos suprematistas
dos brancos.
Conclusão:
O que fazer?
Assim
sendo, pois: você deseja salvar o mundo e ter amigos brancos, mas sabe que
assistir a vídeos de YouTube e
participar de quermesses de venda de bolo para fazer finanças para comprar armas
para o governo de Uganda em luta contra o Exército da Resistência de Deus [orig. Lord's Resistance Army (LRA)] não bastará.
Soldados do Exército de Resistência de Deus (Lord's Resistance Army) |
Você
teme Deus e teme guerras, e já começa a desconfiar de que seu governo está mais
interessado em resgatar banqueiros que fábricas de armas. Você deseja participar
e promover justiça para todos, mas você não é branco perfeito, branco puro. E,
mais importante, você já está de saco totalmente cheio de envolver-se
apaixonadamente em invasões de países (qualquer um) árabes, tanto quanto já
morre de tédio ao ver seu time favorito vencer mais um jogo decisivo do
campeonato universal de futebol americano.
Temos
então a solução perfeita para o seu caso: seja você mesmo a mudança. Passe a mão
numa metralhadora e embarque para a Síria. Você consegue. Você estará arriscando
a própria vida por ideais nos quais você não sabe se acredita muito. Mas...
pense pelo lado bom. Você será a matéria-prima que os brancos mais apreciam: sem
braços nem pernas. E livre.
Notas
de rodapé
*Marc
Michael
é sociólogo e vive no Cairo. Está concluindo sua tese de PhD na Universidade de
Cambridge. Escreve sobre saúde pública, finanças, direito, política
internacional e desenvolvimento
[1]
Putativo.
Adj. Acepções: 1) falsamente ou erradamente atribuído a (alguém ou algo);
supositício, suposto (Ex.: filho putativo). 2) Rubrica: termo jurídico. Diz-se
daquilo que, embora ilegítimo, é objeto de suposição de legitimidade, fundada na
boa-fé (ou não) (Ex.: casamento putativo).
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