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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, junho 14, 2012

MEMÓRIAS DE UMA GUERRA SUJA...

 

Recém-instalada, a Comissão da Verdade já tem um grande e inédito material para destrinchar os obscuros anos da ditadura.
Cláudio Guerra
Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS no Espírito Santo, assassino condenado e convertido pela fé, listou em livro-depoimento, um sem número de crimes que praticou nos anos de chumbo, indicando seus mentores, comparsas e uma grande rede de colaboradores da violência nos porões.
Cada vez mais se comprova que conhecer o passado é indispensável para entender o presente
“Memórias de uma Guerra Suja” (Topbooks), depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, já vem causando uma enorme repercussão –menos na grande imprensa onde é sistematicamente ignorado.
Marcelo Netto e Rogerio Medeiros (ao fundo) tem sua obra boicotada pelo PIG

Comoveu seus primeiros leitores pela perversidade: a confissão do ex-policial sobre a incineração, no forno de uma usina carioca, de vários corpos de jovens tragados pela tortura.

Se não fosse pela necessidade imperiosa de julgar atrocidades como essas, só a oportunidade das famílias dos desaparecidos de conhecer o destino de seus entes, já obrigaria a Comissão da Verdade a se debruçar imediatamente sobre tais fatos.

Alguns relatos são tão detalhados e precisos que a verdade exala de seus poros. Em outros momentos, a aparente onipresença do autor lança algumas dúvidas sobre a autenticidade.
 
Mas como em todo processo, um depoimento isolado jamais é suficiente para atingir 
a verdade.
“Memórias” é, assim, um ponto de partida, não um porto de chegada.
Comparando-se ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, a quem teria inclusive sucedido após a morte (cujas circunstâncias macabras também relata), Guerra se insere em alguns dos mais conhecidos episódios da repressão: a chacina da Lapa, a morte de Alexandre Baumgarten, o atentado frustrado ao Riocentro.
Mas sua aparente invisibilidade, eis que jamais mencionado em listas e depoimentos de militantes ou familiares de desaparecidos, pode-se dever a uma inusitada circunstância: Guerra alega que jamais torturou.
Matou e ocultou cadáveres, aos borbotões, mas quem cruzou com ele não teria ficado vivo para contar a história.

O livro não é romanceado e tampouco se enquadra no ‘new-journalism’ –há muito mais confissão do que reportagem.
Não é de fácil leitura e a urgência em publicá-lo certamente prejudicou uma montagem mais agradável. Mescla sem aviso prévio passagens em primeira e terceira pessoa, repete notas exaustivamente e obriga o leitor a um zigue-zague frequente, entre o texto e os anexos. Ainda assim é uma leitura obrigatória.

Com ela é possível entender um pouco mais de como foi construída a repressão submersa no país e qual a extensão do legado que ela nos deixou.
Guerra explica que foi a expertise que já tinha como um policial-matador que o valorizou na colaboração com a ditadura. A tática de simular resistências já era de há muito praticada pela polícia –a “vela (arma) na mão do defunto”- e foi incorporada ao cotidiano das mortes pelo Estado autoritário.

A sofisticação da repressão se deu em torno das bem articuladas comunidades de informação que reuniam militares de várias forças, agentes de várias polícias e até mesmo operadores graduados do direito –irmanados na prática dos crimes contra a humanidade. Guerra faz menção, inclusive, a uma suposta integração de procuradores da República a esta comunidade, bem como indica inúmeros de seus financiadores privados.

Algumas passagens são dignas de romance de espionagem.
O agente da CIA que proporcionava o ingresso de armas no país, os encontros de mandantes e assassinos em uma sauna, a maleta com metralhadora embutida, que atirava ao abrir.
Mas o relato que resume de forma mais contundente o fim desse processo está longe de parecer ficção.
General Silvio Frota, o golpista da linha dura derrotado

Guerra explica o que aconteceu aos operadores da repressão quando a luta da linha-dura para sufocar a abertura foi derrotada: “Alguns que se escondiam sob falsas identidades acabaram incorporados à máquina governamental. Viraram servidores públicos. Outros tiveram sorte diferente.... o pessoal responsável pelas operações mais perigosas foi absorvido em outras organizações, a maioria relacionada à contravenção”.
O ex-policial, por exemplo, admitiu ter se abrigado no jogo do bicho após o fim do regime militar.

O relato põe por terra a recorrente ideia de que a repressão significou mais segurança e a democracia é que tem sido permissiva com o crime.
Ao revés, o recrudescimento da criminalidade é um dos mais perversos e cruéis legados da própria ditadura –desde o incremento do contrabando de armas à experiência aguda dos grupos de extermínio.
Nas palavras de Guerra, que vivenciou na pele essa transição e esteve dos dois lados do balcão:
A derrocada - o terrorista infiltrado no exercito brasileiro explode a bomba no próprio colo durante evento popular  no Riocentro.

“A decadência dos aparelhos de combate ao comunismo coincide com o crescimento de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas, à formação de milícias e principalmente ao jogo do bicho. O know-how conquistado com o aparato do Estado agora serviria ao submundo do crime organizado”.

Cada vez mais se comprova que conhecer o passado é indispensável para entender o presente.

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