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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, junho 09, 2012

O cacique Serra pela ótica de um estudioso


Às vezes uma réstia de luz penetra nas cavernas escuras da mídia para iluminar algumas verdades que são aparentes apenas àqueles que se dedicam à tarefa cotidiana de coligir e confrontar informações na imprensa, passando ao largo das análises carrancudas dos articulistas oficiais da grande imprensa e de seus avatares no telejornalismo.

Desse raro atributo de esclarecimento está revestido o artigo assinado pelo cientista político Claudio Gonçalves Couto (transcrito abaixo) da FGV, na edição do jornal Valor Econômico que circulou no feriado de Corpus Christi. O texto fala de uma questão de mérito, o que diferenciaria a influência política do puro caciquismo na prática de lideranças políticas?

Pra desvendá-la confronta dois episódios recentes da cena política nacional: a iniciativa do ex-presidente Lula da Silva de apoiar para candidato a prefeito da maior cidade do País o nome de alguém jejuno em disputas eleitorais, seu ex-ministro Fernando Haddad, em detrimento do nome consagrado da senadora Marta Suplicy; e a decisão do ex-governador José Serra  de apresentar seu nome à mesma disputa eleitoral.

 Para surpresa daqueles que se acostumaram às versões de matiz conservador predominantes na imprensa e na mídia, as quais associam os atos de Lula ao personalismo autoritário de um líder sindical e os gestos de Serra à capacidade estratégica de um exímio acadêmico, o autor do artigo mostra a diferença entre os dois políticos atribuindo ao ex-presidente o perfil de líder renovador e ao ex-governador o de cacique que violenta a vontade de seu partido e sufoca-lhe a capacidade de renovação.

Os argumentos alinhavados pelo professor valem por certo bem mais que as precedentes ponderações, que bem poderiam ser omitidas.                                                                           

Sobre caciques e partidos

Por Cláudio Gonçalves Couto

A birra de Marta Suplicy, ausentando-se do ato de lançamento da candidatura de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo, enseja uma boa oportunidade para discutir o papel das lideranças individuais nos partidos políticos. Ela serve para mostrar que o caciquismo é um fenômeno mais complexo do que sugerem análises apressadas sobre a influência de certas lideranças na definição dos rumos das organizações partidárias. Quanto a isto, um aspecto ganha relevo: enquanto alguns líderes criam sucessores, atuando na produção ou reforço de novas lideranças (crucial para a sobrevivência organizacional), outros embotam essa criação, contribuindo para a esclerose organizacional.

O problema é distinguir entre caciquismo - um tipo de liderança que subjuga a organização à vontade pessoal inquestionável do líder - e influência. Uma liderança influente no partido logra convencer os correligionários, sem contudo impor-lhes decisões inquestionáveis. Assim, se a persuasão é requisito para a obtenção de anuência, não há caciquismo. Trata-se de diferença de grau, que ultrapassados certos limiares se converte em distinção de natureza.

Há situações nas quais se migra, ao longo do tempo, de um estado para outro. Assim, caciques podem converter-se apenas em lideranças influentes, seja por que se debilitam ou ajustam a conduta, seja porque um reforço organizacional do partido lhes reduz o espaço para o arbítrio. Inversamente, líderes influentes podem, em certas conjunturas, tornar-se caciques; algo mais provável em organizações partidárias frouxas ou enfraquecidas - o que não é a mesma coisa.

Caciques são os que se colocam acima do partido

Para existir, o cacique necessita do apoio de um subconjunto organizacional dentro do partido: sua entourage, uma facção majoritária ou posições-chave na burocracia. Assim, enquanto o partido como um todo é fraco organizacionalmente, esse subgrupo é relativamente forte, impondo a vontade de seu líder. Contudo, há uma condição principal, decisiva distinguir o caciquismo da influência: o cacique subordina os interesses da organização aos seus próprios; é o projeto pessoal do cacique que sempre prevalece sobre o do partido - e mesmo sobre o de sua claque.

Há quem veja no patrocínio de Lula à candidatura de Fernando Haddad evidência de caciquismo, demonstrando que o PT nada mais seria do que um partido sem vontade própria, a reboque do grande líder. Será mesmo? Isto não se coaduna com características notórias do partido: organização forte, disputa intensa entre facções, espaço para contestação seguido de alinhamento a decisões tomadas pelo conjunto. Na realidade, Lula é muitíssimo influente, mas não um cacique no sentido próprio do termo. E isto não só por méritos próprios dele, mas pelas características do partido que construiu - que restringe o caciquismo.

No caso paulistano, antes mesmo de Marta desistir da candidatura, já enfrentava - além de Fernando Haddad - a oposição interna de antigos aliados, agora pré-candidatos, os deputados Jilmar Tatto e Carlos Zarattini. Candidata duas vezes derrotada à prefeitura, a senadora já não desfrutava da condição de escolha óbvia da agremiação - como foi em 2008. A imposição de seu nome - a despeito de outras postulações, de um clamor interno por renovação e da grande rejeição aferida pelas pesquisas ¬- é que seria caciquismo. Em tal contexto, o apoio de Lula à renovação operou mais como contrapeso à tentativa de caciquismo em nível local do que se mostrou ele próprio uma imposição inconteste.

Compare-se com a autoimposição de José Serra no PSDB, contra Aécio Neves. Verificou-se no ninho tucano uma estratégia de sufocamento da disputa interna pela interminável postergação do embate, até que o ex-governador mineiro jogou a toalha, considerando que não teria tempo hábil para se viabilizar. A solução pelo alto, dessa ardilosa vitória pelo cansaço, repetiu-se agora na escolha da candidatura tucana à prefeitura paulistana. Após meses alegando que não se candidataria, o que ensejou uma animada disputa entre quatro pré-candidatos (sugerindo renovação partidária) o ex-governador mudou de ideia, inscreveu-se na prévia após o prazo regulamentar, provocou a desistência de dois postulantes e prevaleceu. Serra obteve na prévia apenas pouco mais de 50% dos votos, num embate contra postulantes muito menos expressivos - tanto no que concerne à envergadura política quanto à história. Isto mostra o tamanho do desagrado que sua soberba causou na base tucana.

Fosse o PSDB dotado de maior densidade organizacional, os dois episódios da imposição serrista deflagrariam uma crise interna - como a que deve se produzir no PT de Recife neste ano. O caráter elitizado da agremiação e a baixa intensidade da vida partidária (sobretudo se comparada à do PT) permitem que as manobras dos caciques e seus embates permaneçam basicamente como um problema deles mesmos. A renovação, neste caso, ocorre apenas nas franjas da disputa política (como nas eleições de deputado estadual e vereador), pelo ocaso das lideranças ou por algum acidente; raramente por uma estratégia bem definida. Em São Paulo, a oportunidade da renovação foi perdida; o risco da esclerose cresceu.

É nisto que as atuações de Lula e Serra se distinguem como influência, no primeiro caso, e caciquismo, no segundo. Enquanto o ex-presidente interveio no processo de modo a promover uma renovação de lideranças e atuando segundo a lógica da organização partidária, o ex-governador apenas fez prevalecer seu projeto pessoal de poder, às expensas do partido, que tornou seu refém. Isto permanece, a despeito de quem venha ganhar ou perder as eleições de outubro.

Algo que confunde a percepção de papéis tão distintos são os estilos muito diversos de um e de outro. Enquanto Lula é um líder carismático e de estilo esfuziante, Serra é um líder gerencial e de estilo soturno. Intuitivamente, o senso comum identifica o primeiro com o improviso e o personalismo, e o segundo com a racionalidade e a institucionalidade. Uma análise mais cuidadosa revela exatamente o oposto.
*Brasilquevai

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