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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, junho 06, 2012

OLHOS QUE NOS OLHAM



Os olhares que nos olham são tantos.
Na rua, nas câmeras de elevador, no facebook, no Google Earth.
Logo estarão nos vendo no box do banheiro, fazendo a barba,
tocando uma bronha, bolinando nossas mulheres.
Tentaremos o esconderijo, e esconderijo não haverá.
Como um esconde-esconde numa sala sem móveis.
São tantas as medidas e tantos os olhares que nos olham.
Talvez mais olhares que medidas...porque acontece de muitos terem a mesma medida do olhar.
São animais que andam em bando, com medo da solidão lupina.
Então nos interpretam, arbitrariamente - essa é sua delícia e deleite.
Quê mais poderiam fazer, esses que nos olham?
Essas moscas que rondam fraternalmente uma grande merda coletiva.
Mas não se pode negar quando estão certos - tantas são, de fato, nossas interpretações.
Somos tanta coisa, coisa tanta:
um filho da puta, um anjo, um arrogante asqueroso, um potencial namorado.
Os disfarces são a nossa embriagues, nossa mentira posta.
A verdade é como um apartamento limpo.
A gente chega perto e a verdade se esvai pela mácula da presença.
Trazemos pó na sola dos pés,
trazemos a água da chuva que escorre pelo guarda-chuva,
trazemos a consciência que percebe a sujeira que faxineira também viu, e se limitou a ver,
como um médico que vê uma chaga e vai tomar um chá.
A casa, mesmo limpa, só se suja com a nossa presença.
Não há faxineira possível para a toda a nossa sujeira.
Então é melhor disfarçar, jogar tudo embaixo do tapete,
virar o colchão com os lambuzos de gozo.
Disfarçar que as formigas vivem conosco,
disfarçar que há um cemitério de espermatozóides pelas mantas,
disfarçar que há um antro de ácaros por todos os lados,
mentir que as pombas cagam nas bordas da sacada.
Quantas são as cagadas marginais que não queremos ver!
Somos como as pombas cagonas, com a diferença que elas cagam sem culpa.
Se ao menos pudéssemos cagar nossa culpa, mas não.
Civilizados, conscientes e metidos a gente nos quis a vida. Ela é uma rainha.
Quê pensam, afinal?
Todo julgamento é uma colcha de retalhos, e não há como saber a cor única da colcha.
Talvez pouco importe a cor, se tudo estiver escuro.
Convenhamos: fechamos os olhos a tudo que importa,
que é pra sentir as cores por dentro, e não com a pobreza dos olhos,
essas lanças afiadas pela natureza humana.


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