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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, junho 21, 2014

De garoto-propaganda a perseguidos: os atletas e os extremos na ditadura

Osvaldo Orlando da Costa e Stuart Angel são alguns dos personagens que, apesar do passado como atleta, ficaram marcados pela luta revolucionária. Ex-pugilista do Vasco, Osvaldão foi um dos líderes da Guerrilha do Araguaia, enquanto o filho da estilista Zuzu Angel, bicampeão carioca de remo pelo Flamengo, foi um dos membros do MR-8.
De garoto-propaganda a perseguidos: os atletas e os extremos na ditadura
Osvaldo Orlando da Costa e Stuart Angel são alguns dos personagens que, apesar do passado como atleta, ficaram marcados pela luta revolucionária. Ex-pugilista do Vasco, Osvaldão foi um dos líderes da Guerrilha do Araguaia, enquanto o filho da estilista Zuzu Angel, bicampeão carioca de remo pelo Flamengo, foi um dos membros do MR-8.
Por: Por Amanda Kestelman, Helena Rebello, Lydia Gismondi e Márcio Mará
Em meio à censura das matérias políticas e policiais, os destaques dos jornais estavam abertos às manchetes esportivas. Enquanto no Brasil os militares se desdobravam para controlar manifestações públicas contra a ditadura, mundo afora os atletas do país davam involuntariamente ao governo um prato cheio para usar as vitórias nas quadras, nos estádios e ringues como propaganda de tempos de glória. Referências em suas respectivas modalidades, Maria Esther Bueno, Amaury Pasos, Aída dos Santos e Éder Jofre, entre outros, tiveram seus feitos associados à imagem de uma nação unida e em crescimento.
Por outro lado, cidadãos em que a veia revolucionária pulsava mais forte do que a aptidão para o esporte sofreram com a tortura – e seus nomes passaram longe das páginas dos jornais no período. Osvaldo Orlando da Costa e Stuart Angel são alguns dos personagens que, apesar do passado como atleta, ficaram marcados pela luta revolucionária. Ex-pugilista do Vasco, Osvaldão foi um dos líderes da Guerrilha do Araguaia, enquanto o filho da estilista Zuzu Angel, bicampeão carioca de remo pelo Flamengo, foi um dos membros do MR-8.
No dia em que o golpe militar de 1964 completa 50 anos, o GloboEsporte.com conta, através de depoimentos de atletas, parentes e amigos, parte da história que passou longe das páginas dos jornais da época. Confira nos tópicos abaixo.
Éder Jofre é coagido a dar luvas a general
Recém-sagrada bicampeã mundial em 1962, a seleção brasileira de futebol era o carro-chefe da propaganda de esportes do governo ditatorial – que chegaria ao ápice com a Copa de 1970 e a música “Pra frente Brasil”. Mas os esportes olímpicos também viviam dias de grande apelo devido a uma boa safra de atletas. Entre os nomes de destaque, estava Éder Jofre. Atleta do Brasil nos Jogos de Melbourne 1956, o pugilista havia se profissionalizado no ano seguinte e conquistado seu primeiro título mundial no início da década de 1960 – o manteria até 1965, quando foi derrotado duas vezes, em lutas contestadas, pelo japonês Harada.
Quando voltou aos ringues, Éder estreou como peso-pena e construiu nova trajetória vitoriosa. Até que, em 1973, em luta em Brasília, faturou o cinturão do Conselho Mundial de Boxe (WBC) ao bater o cubano José Legra. De posse do novo título, o paulista estava pronto para cumprir a promessa de depositar as luvas da luta decisiva no túmulo de sua mãe, Dona Angelina, falecida dois anos antes. Uma pressão inesperada, porém, fez com que a homenagem fosse feita pela metade.
- Quando meu pai foi campeão em Brasília, sob as asas dos generais, ele foi orientado a dar as luvas da conquista para o presidente Médici. Meu pai falou que não, porque tinha prometido colocar no túmulo da minha avó, que tinha falecido em 1971. Ele tinha dito que, se fosse campeão, colocaria as luvas no túmulo dela como homenagem e reconhecimento. Mas ele foi meio que coagido a mudar de ideia. Disseram que teria que dar, houve a pressão. Aí ele falou que tudo bem, daria a mão direita para ele e a esquerda foi para a mãe – contou Marcel Jofre, filho do boxeador.
Professor de História do Brasil Republicano na UFF e na UFRJ, Marcus Dezemone lembra-se de ver a imagem de Éder ser utilizada como símbolo de sucesso do país, mas ressalta o cuidado que o governo tinha para que esta associação fosse indireta: sugerida, mas não oficializada.
- O regime oficialmente não usava os atletas como propaganda política. Mas empresas estatais e privadas do período se apropriaram desse poder do ufanismo que envolve o esporte. Eu me recordo de peças publicitárias que usavam as imagens de boxeadores, como Éder Jofre, e de esportistas bem-sucedidos em geral, com uma publicidade que se assimilava ao modelo empregado pelo regime. E, claro, o uso do futebol para isso era muito emblemático.
Basquete tem ajuda, mas aída pena em 1964
Os Jogos de Tóquio 1964 foram o primeiro grande evento do gênero após a implantação do regime e teriam grande importância para mostrar a valorização dos esportes olímpicos no novo governo. Nesse cenário, a Confederação Brasileira de Basquete era o elo perfeito para esse primeiro passo. Presidida pelo almirante Paulo Martins Meira desde 1938, a entidade contava com o time bicampeão mundial em 1963 e forte candidato ao pódio olímpico – ficaria com o bronze. Um dos expoentes da equipe, Amaury Pasos lembra que outros militares também acompanhavam o time de perto e faz questão de enfatizar a importância do trabalho deles para que os atletas pudessem competir internacionalmente.
- O almirante Paulo Martins Meira, o major Covas Pereira, que era uma espécie de assistente do Kanela (treinador), e outros militares acompanharam nossa equipe e aportaram toda espécie de dedicação e sacrifício, assinando até promissórias para que a equipe pudesse viajar, porque não havia fundos. Muito se deve a estes militares que se esforçaram abnegadamente e deram toda espécie de ajuda. E eu pertencia ao Partido Socialista Brasileiro, então é um comentário isento de qualquer ânimo político. Estou apenas externando uma verdade – afirmou Amaury.
Única mulher da delegação brasileira nessa edição olímpica, Aída dos Santos não teve a mesma sorte. Representante do país no salto em altura, a carioca viajou com uniforme emprestado e sem treinador. Ajudada por um atleta cubano, conseguiu com um representante de material esportivo a doação de um par de sapatilhas utilizadas por velocistas, com seis pregos na parte da frente – o dos saltadores tinha quatro pregos na frente e dois atrás no pé da impulsão.
Mesmo com condições precárias e o abalo emocional por uma lesão sofrida durante as eliminatórias, Aída terminou a disputa em quarto lugar, com 1,74m, dois centímetros a menos do que a russa Taisia Chenchik, medalhista de bronze. Quando voltou ao Brasil, veio a surpresa. Desconhecida do grande público quando viajou para o Japão, a atleta retornou com recepção de gala.
- Depois dos Jogos apareceu muita gente. Mas antes, quando eu mais precisava… Fui para o Japão sem técnico. A delegação masculina toda tinha uniforme, sapato, mas falaram que não tinha roupa para mim. Parecia que estavam torcendo para eu não ir. No Japão eu andava de bicicleta e chorava, não tinha como treinar, só consegui uma sapatilha de velocista na tentativa com o segundo fornecedor depois de chorar mais. Mas tinha que competir da mesma maneira, e estava tão chateada, preocupada com os brasileiros, que fui. Quando cheguei ao Brasil até fiquei espantada. Tinha Corpo de Bombeiros para me receber, flores… Mas falei que ali não interessava mais, que eu precisava antes – lembrou.
Remador do Fla, Stuart Angel é torturado e morre
O pulmão enchia de ar a cada remada nas águas ainda limpas da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, nos anos 1960. Foi no auge de sua adolescência, aos 18 anos, que Stuart Angel ajudou a levar o Flamengo ao alto do pódio do tradicional e badalado Campeonato Carioca de Remo, em 1964. Esse mesmo ano, marcado pelo Golpe Militar, mudaria sua vida para sempre. A veia política passou a pulsar mais forte do que a de remador. A luta contra a ditadura militar no Brasil viraria a missão prioritária do estudante de economia. Mas a fase como membro do grupo guerrilheiro de extrema esquerda MR-8 durou pouco e teve um fim trágico. O pulmão, antes acostumado a lhe trazer alegrias, não suportou as torturas de membros do Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica). Aos 25 anos, o filho de Zuzu Angel morreu por asfixia e envenenamento com gás carbônico, em um dos casos mais emblemáticos desse obscuro capítulo da história brasileira.
- O caso mais conhecido de atleta envolvido no combate ao regime militar foi mesmo de Stuart Angel. Ele pertencia a essa juventude de classe média da extrema esquerda armada. O lado dele de atleta acabou ficando de lado. Tem tanta coisa para se explorar da vida dele que isso ficou em segundo plano – analisou o professor Marcus Dezemone.
De fato, em biografias, reportagens e documentários, a carreira de esportista de Stuart Angel sempre foi ofuscada por sua trajetória nos anos seguintes da conquista do bicampeonato carioca pelo Flamengo. Mas a paixão pela vida de atleta esteve aflorada em 1964 e 1965, aos 18 e 19 anos, quando participou ativamente das conquistas estaduais de seu time no remo. O filho da famosa figurinista e estilista Zuzu Angel, que também tinha nacionalidade americana, era um apaixonado por esportes. Chegou a praticar tênis, natação, capoeira e levantamento de peso. Foi dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas, mais precisamente do tradicional barco Oito, conhecido como “Transatlântico de Luxo”, porém, que se descobriu atleta.
- Ele era um rapaz da Zona Sul, e o remo sempre foi um esporte muito grande, muito praticado por moradores de Ipanema. Ele foi um grande remador. Mas, quando entrou para valer na militância, teve de deixar o remo. Ser guerrilheiro não permitia nada além daquilo. No momento em que ele entrou para essa vida de clandestinidade, tudo que vivia antes se cessou. Ele começou uma vida completamente diferente – contou o cineasta Sérgio Rezende, que contou as histórias da famosa família no filme “Zuzu Angel”, lançado em 2006.
O jeito alegre, divertido e tranquilo do jovem Stuart Angel não deixava pistas de que, por trás do típico garoto da Zona Sul Carioca, havia um revolucionário prestes a trocar o remo pela luta armada. No início de sua carreira de atleta, os colegas de equipe e os adversários não desconfiavam do seu envolvimento político. Para se proteger e tentar preservar a vida das pessoas em sua volta, o remador escondia sua outra perigosa atividade.
- O Flamengo vencia todas as provas na categoria dele. Stuart era um remador excepcional. Não cheguei a competir diretamente contra ele, porque nossas categorias eram diferentes. Mas todo mundo o conhecia e eu o achava um cara divertido, brincalhão, um cara “light”. Até por isso, ninguém podia imaginar que ele tinha essa ligação com forças revolucionárias. Quando soubemos disso, ficamos muito chocados e preocupados com o drama que ele estava vivendo – revelou o jornalista Antônio Maria, ex-remador do Botafogo e colega de Stuart.
A dedicação cada vez mais perigosa e intensa às suas ideologias, porém, foi atrapalhando a carreira de atleta no fim dos anos 1960. O segredo já não tinha mais como ser guardado a sete chaves. As ausências nos treinos passaram a ser constantes, e a rotina e as companhias de Stuart começaram a entregar o outro viés do talentoso remador. Os amigos do esporte, porém, só tiveram a noção real do seu envolvimento com a luta armada quando seu técnico o encontrou na rua disfarçado.
- Ele tinha desaparecido. Ninguém sabia para onde ele tinha ido. Um dia o técnico do Flamengo, o Buck (Guilherme Eirado da Silva), viu um soldado que era a cara do Stuart. Quando ele estava indo falar com ele, o Stuart piscou, como se estivesse o mandando sair fora dali. Ele estava disfarçado, não podia ser desmascarado. E os problemas foram se intensificando. Lembro que chegou a morar escondido na garagem de barcos do Flamengo. Durante aquele tempo, não podia sair de lá para nada. Os seguranças buscavam comida para ele todos os dias na rua. Mas Stuart acabou tendo que sair de lá. Ele pensava muito nas pessoas, ficava com medo de acabar prejudicando alguém. Depois disso, ninguém nunca mais soube dele – lembrou Maria.
Quando os colegas do esporte voltaram a ter notícias, souberam que Stuart já estava morto. Embora os detalhes nunca tenham sido confirmados, o que se sabe é que o revolucionário foi levado para o Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica em maio de 1971 e lá teria morrido em decorrência das intensas torturas sofridas. Na maior e principal delas, foi arrastado por um jipe com a boca no cano de descarga, causando a fatal asfixia.
Nos anos seguintes, Zuzu Angel travou uma luta incansável para encontrar o corpo do filho. A estilista, no entanto, morreu em março de 1976, em uma suspeita de atentado, sem descobrir ao certo o paradeiro do esportista e guerrilheiro.
Fonte: GloboEsporte.com

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