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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, agosto 18, 2014

Quando eu nasci já era impura, pecadora. Me batizaram – Nada de Livre arbítrio

Pedaços de mim

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Por Ana Burke
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Quando eu nasci já era impura, pecadora.
Me batizaram – Nada de Livre arbítrio
Me chantagearam: “Se você não segue a Jesus, vai ser condenada”
Me ameaçaram: “Se você não obedecer, vai ser atormentada no Inferno por toda a eternidade”
Me colocaram de joelhos porque deus queria assim
Me deram uma cruz porque deus amava o meu sofrimento
Me deram estátuas que tinham alma, podiam me ouvir e atender os meus pedidos. Sempre me ignoraram.
Algumas eram tão poderosas que poderiam me salvar…de quê eu nunca soube
Aliás, criança não tem que saber de nada, têm que obedecer porque adulto sabe o que faz – é o livre arbítrio. Afinal, Deus não pode ser contrariado! Ele sabe tudo, está em todos os lugares e me vigiava o tempo todo…Nada de Paz ou privacidade.
Eu ía ao Banheiro e lá estava Ele. Era um tormento fazer xixi…Esquece o resto!
…E lia os meus pensamentos – Melhor não pensar.
Eu gostava de “plantar bananeira” no gramado e o meu vestido ía parar no pescoço – Lá vinha chinelada na bunda…Nem “bunda” eu podia falar.
Pecado mostrar as vergonhas…Diabos! Eu nem sabia o que era sexo (não pode falar diabo)…Assim não dá! Pra mim a “coisa” era só uma máquina de fazer xixi e…Diabos! Falei novamente o nome da entidade malígna….Ai!
Entrei no teatro da igreja … me deram o papel de São Tomé. Muito bom!
Pelo menos este duvidava…era o mais inteligente
Depois é que eu percebi porque ninguém queria fazer o São Tomé!
Era proibido duvidar e questionar…têm que ter fé…
São Tomé era discriminado, um pária e só servia para dar o exemplo que nunca deve ser imitado. Diabos!…Falei de novo…Anta
E vieram os missionários na cidade…e lá fui eu me confessar…Que desastre!
Eu pensei…pensei…pensei…e não encontrava muitos pecados…inventei um “monte”, mas escondi que eu tinha uma cabana só minha do outro lado do rio e ficava lá horas lendo livros proibidos. E foi aí que eu descobri que deus não sabia era de nada…E os representantes dele também. Nem desconfiaram que eu soltei o passarinho do vizinho da gaiola e o coitadinho foi direto para o fogo no fogão…foi fritado…Não dormi por muito tempo.
Se deus sabia de tudo…via tudo…porque eu tinha que me confessar…espertos. Queriam era saber da minha vida e da vida da minha família. Conta tudo, me disseram! Pra que contar? Deus não sabe? Eu era rebelde…só até certo ponto. 
Eu acho que não foram muito com a minha “cara”.
Me deram um terço e uma bíblia. “Reza o terço todos os dias”…Barbaridade!
Ave Maria cheia de graça… Ave Maria cheia de graça… Ave Maria cheia de graça…mais o Pai Nosso…e Salve Raínha…e ainda por cima ir ao catecismo… E fazer as lições do catecismo…E as liçoes da escola? Não…isto parecia ser menos importante. Quando eu teria tempo pra brincar? Pra ler? Pra correr pelos pastos? …Nada de roubar laranja nas fazendas! Nada de subir em árvores…Nada de atravessar as pontes e andar pelos caminhos…Cachoeira? Nem pensar…E a minha cabana?
A molecada estava jogando queimada na rua…Droga de reza… Eu sempre dei um banho na molecada…não tinha um que conseguisse me queimar… E lá vem sermão! Menina não pode brincar com moleque! Sabiam de tudo…Deus ditava regras!
Me deram uma penitência pelos pecados que eu contei… e tinha que ir à missa rezar…rezar e rezar…Fui…ou pretendia ir. Passando pela praça vi o “Zé da Alice” sentado no banco tocando violão…Fiquei lá. Delícia…esqueci a missa. Esta Deus não contou pra eles. Furei a penitência.
E o pior aconteceu…Chegou o circo e se instalou do lado da minha casa…Rezar o terço? “Banana”…Não tem dinheiro? Lá vou eu por debaixo da lona…O palhaço “Mexerica” era mais engraçado que o terço. Não me lembro mas acho que ninguém deu por minha falta…Tinha muita gente na casa, visitas.
Adorava ir atrás das mulheres catar lenha e ouvia todas as suas histórias. Eram histórias de arrepiar…dava mais medo que as histórias do inferno que o padre contava.Lobisomem, mulas sem cabeça (Toda mulher de padre se transformava em mula sem cabeça), corpo seco e assombração (depois eu aprendi que os espíritas falavam com assombração e até seguiam as suas doutrinas). E todas juravam que tinham visto tais entidades. Foi por isto que eu comecei a duvidar do espiritismo. Se todas viam lobisomem, mulas sem cabeça, corpo seco e assombração era um sinal de que as pessoas poderiam ver o que quer que quisessem ver quando eram sugestionadas.
Eu passava por entre as árvores e tinha a certeza de que o corpo seco estava lá, via lobisomem mula sem cabeça por todo lado até que me convenci que era mais poderosa que eles. Sumiram…acho que ficaram com medo…mas eu queria mesmo era fazer Deus sumir também, assim ele não me vigiaria mais, não faria chantagens comigo ou me ameaçaria com o inferno. Ele era pior que o “Cão”. Criou a porcaria do inferno só pra me enfiar lá dentro.
E foi aí que eu percebi o quanto eu era importante. Deus não teve o trabalho de criar um inferno pra mim? Criou demônios, o diabo, a mula sem cabeça, o lobisomem, o corpo seco e as assombraçoes. Pimba! Descobri que podia me livrar de todas estas coisas como me livrei das assombraçoes. E se eu pude me livrar de tudo isto, eu poderia me livrar também do resto que me prendia, e ficar livre. Todos sofriam e eram aterrorizados com as visões do inferno! Eu? Matei o inferno e joguei o rosário no lixo…pronto.

Fui pra praça escutar o “Zé da Alice” tocar violão.
*A.Burke

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