Argentina: outro silêncio que se rompe
Via CartaMaior
A
cumplicidade ativa entre a Igreja Católica e a mais bárbara das
ditaduras militares que sacudiram a Argentina nunca foi segredo para
ninguém. Sua dimensão e profundidade, sim. O número de capelães
militares denunciados como tendo assistido, impávidos ou quase, a
sessões de torturas é amplo o suficiente para deixar claro que nada
daquele horror podia ser ignorado pela hierarquia eclesiástica e,
portanto, pelo Vaticano. O que agora se revela é estarrecedor.
Eric Nepomuceno, de Buenos Aires
A
Argentina despertou no domingo, dia 27 de maio, com um silêncio a
menos: um longo texto do veterano jornalista Horacio Verbitsky, no
combativo ‘Página 12’, mostra como foi confirmado e reconhecido o que
todo mundo, ou quase, desconfiava. Sim: a Igreja Católica admitiu
formalmente, e diante da Justiça, que desde pelo menos 1978 sabia que a
ditadura encabeçada pelo general Jorge Rafael Videla assassinava presos
políticos. E mais: não satisfeita em saber e se omitir, a cúpula da
Igreja Católica não se furtou a examinar, junto ao próprio Videla, como
manipular a informação sobre esses assassinatos, como lidar com a
aberrante figura do ‘desaparecido’.
A
cumplicidade ativa entre a Igreja Católica e a mais bárbara das
ditaduras militares que sacudiram a Argentina nunca foi segredo para
ninguém. Sua dimensão e profundidade, sim.
O
número de capelães militares denunciados como tendo assistido, impávidos
ou quase, a sessões de torturas é amplo o suficiente para deixar claro
que nada daquele horror podia ser ignorado pela hierarquia eclesiástica
e, portanto, pelo Vaticano. As palavras públicas de padres, bispos e
cardeais em apoio à ‘cruzada dos militares no combate ao caos’ – assim
chamavam o genocídio – não eram mero jogo de cena para acobertar um
trabalho humanitário feito nos bastidores, na tentativa de salvar vidas e
evitar mais tormentos. Não, não: o papel nada cristão da hierarquia
católica durante aqueles anos de horror e mortandade já foi revelado,
mas, como acaba de ficar claro uma vez mais, ainda falta muito a ser
desvendado, muito silêncio a ser rompido.
O que
agora se revela é estarrecedor. Por exemplo: o cardeal Raúl Primatesta,
arcebispo de Córdoba naquele 1978 de péssima memória, chegou a advertir o
general Videla, durante um almoço junto a outros altos mandos da Igreja
Católica, que o costume de ‘desaparecer’ presos políticos – ou seja,
assassinar e depois sumir com os corpos – era um método que poderia
‘trazer más consequências’. Ele quase disse o seguinte: matar, dá para
entender; sumir com os corpos, não.
O arcebispo
de Buenos Aires, cardeal Juan Aramburu, foi na mesma direção: disse que
era preciso encontrar um jeito para que as pessoas parassem de fazer
perguntas sobre os desaparecidos. Vale repetir: o Vaticano sabia de
tudo, o tempo todo.
Poucos dias antes da
revelação feita por Verbitsky, outro documento – elaborado por médicos
argentinos – denunciou a participação de pelo menos mil e duzentos de
seus colegas em crimes de lesa humanidade. Acompanhavam ou participavam
de sessões de tortura, supervisionavam o andamento dos tormentos,
indicavam quando parar ou, em casos extremos e sem volta, quando
liquidar de vez com a vítima. Não apenas médicos: também enfermeiros,
psicólogos e paramédicos foram cúmplices ativos e diretos. Havia médicos
civis que se juntavam aos seus companheiros fardados. Todos eles
tiveram participação direta no mais abominável dos crimes cometidos pela
ditadura que sufocou o país entre 1976 e 1983: separar os
recém-nascidos de suas mães nos centros de tortura, e entregá-los a
famílias que ninguém sabe ao certo quais foram.
Havia
pelo menos 30 maternidades clandestinas. As mulheres davam à luz
algemadas e encapuzadas, para não ver a cara dos médicos que as
atendiam. Os bebês eram encaminhados a doações ilegais, as mães eram
encaminhadas ao matadouro. Pelo menos 500 delas morreram sem saber o
destino de seus filhos.
Também eram médicos os
que aplicavam injeções dopantes em prisioneiros que eram retirados dos
centros de tortura, embarcados vivos em aviões e, vivos, atirados no
oceano Atlântico ou nas águas do rio da Prata. Não se conhece nenhuma
estatística confiável sobre quantos dos desaparecidos desapareceram
assim. O que sim, se sabe, é que dos cinco mil presos que passaram pelo
mais notório centro de tormentos, o que funcionava na antiga ESMA
(Escola Superior de Mecânica da Armada), pouco mais de 200 sobreviveram.
Quantos dos outros foram jogados de aviões no vazio?
Existe
um claro pacto de silêncio entre esses assassinos que um dia fizeram o
juramento de Hipócrates, em que se comprometeram não a ser hipócritas
para sempre, mas a, para sempre, salvar vidas humanas. E é esse pacto de
silêncio que precisa ser roto, para que se saiba quem é quem entre os
médicos do país.
Sim, é verdade: quanto mais se
avança, na Argentina, no caminho da busca da verdade, do resgate da
memória e do cumprimento da justiça, mais silêncios são rompidos, mais
horrores são revelados. Mais justiça é feita.
Quanto
mais a Argentina avança na revelação da verdade de seus tempos de
opróbrios, mais se livra do peso e da mancha da impunidade. E mais claro
fica que um país que não conhece a verdade do próprio passado não
saberá merecer o próprio presente, e muito menos saberá aproximar o
futuro.
Um vasto silêncio – o da cumplicidade da
Igreja Católica com o regime genocida – se rompe cada vez mais. Outro
vasto silêncio – o dos médicos transformados em carniceiros – começa a
se romper de vez.
E assim, rompendo silêncios,
removendo sombras, a Argentina ouve cada vez mais a própria voz, e sabe,
cada vez mais, da importância da claridade.
*GilsonSampaio
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