Foto: Edição/247
Há dez anos, o jurista e professor da USP
publicou artigo que gerou polêmica em que sustentava: “Gilmar Mendes no
STF é a degradação do Judiciário”. Agora, em entrevista ao 247, ele
reafirma e diz mais: “Há algo errado quando um ministro do Supremo vive
na mídia”
Heberth Xavier_247 - Há dez anos, exatamente em 8 de maio de 2002, a Folha de S. Paulo
publicou um artigo que geraria grande polêmica. Com o título
“Degradação do Judiciário”, o artigo, escrito pelo jurista e professor
da Faculdade Direito da USP, Dalmo de Abreu Dallari, questionava
firmemente a indicação do nome de Gilmar Mendes para o Supremo Tribunal
Federal (STF). A nomeação se daria dias depois, mesmo com as críticas
fortes de Dallari, ecoadas por muita gente da área e nos blogs e sites
da época.
Desde então, Mendes esteve no centro das atenções em
inúmeras polêmicas. Em 2009, na famosa e áspera discussão que teve em
pleno plenário do tribunal com o colega Joaquim Barbosa, Dallari, que
conhece pessoalmente muitos ministros do STF (foi professor de Ricardo
Lewandowski, deu aulas a Cármen Lúcia e orientou Eros Grau), comparou o
fato a uma “briga de moleques de rua”: “Os dois poderiam evitar o
episódio, mas a culpa grande é do presidente do STF, Gilmar Mendes, que
mostra um exibicionismo exagerado, uma busca dos holofotes, da imprensa.
Além da vocação autoritária, que não é novidade.
Um ano depois, em 2010, na véspera das eleições
presidenciais, o Supremo se reunir para julgar a exigência da
apresentação de dois documentos para votar nas eleições. O placar estava
7 a 0 quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo. O
julgamento foi interrompido. Mais tarde, circulou a informação,
confirmada depois em reportagem da Folha de S. Paulo, de que a decisão
de Mendes foi tomada depois de conversar com o então candidato do PSDB,
José Serra, por telefone. Na época, Dallari não quis comentar sobre a
conversa ou não com o candidato tucano e suas implicações (“Como
advogado, raciocino em cima de provas”), mas contestou a atitude de
Mendes: “Do ponto jurídico, é uma decisão totalmente desprovida de
fundamento. O pedido de vistas não tinha razão jurídica alguma, não
havia dúvida a ser dirimida”.
Mas a maior polêmica é a atual, envolvendo o político mais
popular do Brasil, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acusado
por Mendes de chantagem e pressão ao STF. Procurado pelo 247, a quem
concedeu entrevista, Dallari não deixa de reconhecer: “Eu não avisei?”
Veja alguns pontos destacados pelo jurista na entrevista ao 247:
STF NA MÍDIA
“Eu acho muito ruim para a imagem do Supremo que um de
seus ministros fique tanto tempo exposto na mídia, sempre em polêmicas.
Não que eu considere bom ficar enclausurado, pelo contrário. É
interessante que você dê publicidade às ações do STF, para a população
ser melhor informado do processo de decisões no tribunal. Mas há algo
errado quando um ministro do Supremo vive na mídia, e sempre em
polêmicas.
VERDADE OU MENTIRA?
“Não posso fazer um julgamento categórico sobre o que
disse o ministro Gilmar Mendes. Não se sabe onde está a verdade. Se
tivesse mais segurança quanto aos fatos ocorridos poderia dizer melhor.
Mas, de qualquer maneira, dá para afirmar de cara duas coisas: a
primeira é que não dá, definitivamente, para um ministro do Supremo sair
polemizando toda hora para a imprensa, e num nível que parece confronto
pessoal. É algo que não faz parte das funções de um ministro do
Supremo. A outra coisa é que as acusações de Gilmar são extremamente
duvidosas. Feitas com atraso e sem o mais básico, que é a confirmação da
única testemunha. Pelo contrário: o ministro Jobim (Nelson Jobim, que
foi ministro de FHC, de Lula e do próprio STF) negou o conteúdo do que
foi denunciado.
PREVISÃO
“Não avisei? Naquele artigo para a Folha, eu já mostrava,
com fatos, os problemas que o Judiciário brasileiro enfrentaria com o
Gilmar Mendes no Supremo. Não há surpresas, pelo menos para mim. Na
época de sua nomeação, já havia informações, por exemplo, de que ele
contratou, como procurador-geral da República, pessoal para seu cursinho
de Direito. Um detalhe interessante é que o Gilmar Mendes teve 14 votos
contrários à sua nomeação para o STF. Isso quebrou uma tradição de
unanimidade que existia no Senado brasileiro. Enfim, ele não é,
definitivamente, uma personagem altamamente confiável a ponto de
representar um posto tão importante.
IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
“Primeiramente é preciso lembrar que, fosse verdadeira a
nova afirmação de Gilmar Mendes, se tivesse realmente sido vítima de
chantagem, o caminho natural seria uma denúncia ao Ministério Público,
imediatamente. Por que só agora? Dito isso, cabem dúvidas da extensão
realmente do que supostamente foi dito. Ainda que Lula tenha feito
referências ao mensalão, é duvidoso se isso teria tanta implicação
jurídica, pois parece ter sido numa conversa informal, feita na casa de
um amigo comum dos dois. Volto a frisar dois aspectos: é difícil
determinar com certeza, pois não há evidência nenhuma de que Gilmar
Mendes diz a verdade, apenas a sua palavra; e, tivesse a seriedade que
alguns querem pintar, a denúncia teria que ser feita na hora. Ou não é?
Leia abaixo o artigo que Dalmo de Abreu Dallari publicou na Folha, em 8 de maio de 2002:
Degradação do Judiciário
DALMO DE ABREU DALLARI
Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e
civilizado se não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial,
que tome por parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições
efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse
modo, os direitos consagrados nos dispositivos constitucionais.
Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições
encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais
atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do
mais distanciado da ética.
Essas considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o
que tem sido afirmado e reafirmado por todos os teóricos do Estado
democrático de Direito, são necessárias e oportunas em face da notícia
de que o presidente da República, com afoiteza e imprudência muito
estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo
Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de
guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério
Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.
Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há
exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos
direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade
constitucional. Por isso é necessário chamar a atenção para alguns fatos
graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das
autoridades o cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições
constitucionais, com a firmeza e transparência indispensáveis num
sistema democrático.
Segundo vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa,
estaria sendo montada uma grande operação para anular o Supremo
Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual chefe do
Executivo, mesmo depois do término de seu mandato. Um sinal dessa
investida seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral
da União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da
República, para a próxima vaga na Suprema Corte. Além da estranha
afoiteza do presidente -pois a indicação foi noticiada antes que se
formalizasse a abertura da vaga-, o nome indicado está longe de
preencher os requisitos necessários para que alguém seja membro da mais
alta corte do país.
É oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a
constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas e terá
papel fundamental na promoção da responsabilidade do presidente da
República pela prática de ilegalidades e corrupção.
É importante assinalar que aquele alto funcionário do
Executivo especializou-se em “inventar” soluções jurídicas no interesse
do governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que
nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando
Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público
da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na
tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando
inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, “inventaram” uma tese
jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando
Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais
recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em
outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem
decisões judiciais.
Medidas desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do
advogado-geral da União, muitas vezes eram claramente inconstitucionais e
deram fundamento para a concessão de liminares e decisões de juízes e
tribunais, contra atos de autoridades federais.
Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar
Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa, agredindo
grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação
textual de que o sistema judiciário brasileiro é um “manicômio
judiciário”.
Obviamente isso ofendeu gravemente a todos os juízes
brasileiros ciosos de sua dignidade, o que ficou claramente expresso em
artigo publicado no “Informe”, veículo de divulgação do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região (edição 107, dezembro de 2001). Num texto
sereno e objetivo, significativamente intitulado “Manicômio Judiciário” e
assinado pelo presidente daquele tribunal, observa-se que “não são
decisões injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade
do advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do
Poder Executivo”.
E não faltaram injúrias aos advogados, pois, na opinião do
dr. Gilmar Mendes, toda liminar concedida contra ato do governo federal
é produto de conluio corrupto entre advogados e juízes, sócios na
“indústria de liminares”.
A par desse desrespeito pelas instituições jurídicas,
existe mais um problema ético. Revelou a revista “Época” (22/4/ 02, pág.
40) que a chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o dr. Gilmar
Mendes, pagou R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público -do
qual o mesmo dr. Gilmar Mendes é um dos proprietários- para que seus
subordinados lá fizessem cursos. Isso é contrário à ética e à probidade
administrativa, estando muito longe de se enquadrar na “reputação
ilibada”, exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém
integre o Supremo.
A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode
assistir calada e submissa à consumação dessa escolha notoriamente
inadequada, contribuindo, com sua omissão, para que a arguição pública
do candidato pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja
apenas uma simulação ou “ação entre amigos”. É assim que se degradam as
instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional
democrática.
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