Dilma e o porrete americano
Clinton e o sorridente FHC nos tempos da subserviência tupiniquin
Por Paulo Moreira Leite
É possível que nem todos os leitores já tenham percebido mas a pauta
principal dos repórteres que cobrem uma viagem presidencial ao exterior
consiste em procurar gafes de nossos chefes de Estado.
A ideia é que os assuntos sérios e graves são uma chatice que não
interessa a ninguém – visão que nem sempre é verdadeira mas tem sua base
na realidade – e que as gafes são assunto com leitura garantida.
É assim desde os tempos da ditadura militar. Naquele tempo as gafes eram
até uma forma de publicar uma notícia negativa sobre um regime que
governava com apoio da censura prévia.
Os arroubos de vaidade da primeira-dama Dulce Figueiredo eram um prato
tão saboroso que, num esforço para evitar notícias constrangedoras, o
SNI cassou o passaporte do cabeleireiro que costumava acompanhá-la em
viagens, alimentando os jornalistas de fofocas e episódios divertidos,
além de dar um aspecto fútil às visitas.
A pauta prosseguiu nos governos civis e é possível que nenhum presidente
tenha sido tratado com tantas ironias como José Sarney, que, com certo
pedantismo, costumava ser ironizado por causa de seu portunhol.
No início, o monoglota Lula sofreu com comparações negativas, que
procuravam exaltar o poliglota FHC. Depois se viu que mesmo em português
Lula conseguia um respeito que nenhum antecessor obteve antes dele.
E Dilma?
Dilma fez uma viagem aos EUA onde não ocorreu nenhuma gafe. Isso explica
a pouca atenção que recebeu por parte da maioria de nossos jornais e
revistas.
É um erro, já que a visita teve pelo menos um aspecto importante. A
presidente tomou iniciativas importantíssimas na área de educação, dando
sequência a seu projeto de enviar milhares de estudantes para cursos de
pós-graduação nas melhores universidades do planeta.
Mas foi uma viagem morna, que reflete uma realidade que nossos observadores não querem ou não conseguem admitir.
“Todo mundo queria ver Dilma menos Barack Obama,” escreveu o jornalista
Jason Farago, correspondente do Guardian na capital americana, num
comentário que até hoje repercute na internet.
A tese de Farago é que a viagem serviu para mostrar um vazio da
diplomacia americana, que não estava preparada para a emergência de um
país que já não se comporta como uma nação subalterna quando tem
assuntos a tratar com Washington.
Num esforço para avaliar a visita por um ângulo menos banal, Farago
descreve o esforço de várias autoridades americanas para ouvir a
presidente, conhecer suas ideias e ter notícias do Brasil.
São sinais de uma nova realidade mundial, escreve, lembrando já se
tornou até ridículo falar em países emergentes, considerando que são
nações que já emergiram – enquanto as velhas potências ameaçam submergir
em sua própria crise.
Avaliando o comportamento de Obama, Farago lembra que há um descompasso
entre a realidade do mundo de 2012 e a doutrina imperial americana, que
pregava que a América era um quintal dos Estados Unidos, noção que, com
poucas nuances, até hoje alimenta a diplomacia de Washington.
“Nós fazíamos o que queríamos e dizíamos aos outros para não se
intrometerem. A ideia de que um país latino-americano poderia servir de
modelo está além de nossa compreensão. Agora, pela primeira vez, uma
segunda grande potência está crescendo no pedaço, mas entre nós,
gringos, os velhos hábitos do grande porrete custam a morrer.”
A conclusão não poderia ser mais realista: a grande lição da viagem de
Dilma foi mostrar incapacidade do governo americano estabelecer uma
política externa de acordo com os tempos atuais.
O comentário de Farago tem um mérito adicional. A postura de muitos
analistas diplomáticos brasileiros é tão subordinada aos Estados Unidos
que eles não conseguem sequer admitir que Washington possa cometer erros
em suas análises e desvios de conduta. Se a viagem foi morna, a culpa é
do governo brasileiro. Se foi uma tragédia, mais ainda.
São visões que continuam celebrando os compromissos democráticos dos
EUA embora eles tenham patrocinado o grande ciclo de ditaduras militares
do continente dos anos 60 a 80. Gostam de elogiar a postura pelo livre
comércio sem levar em conta que a economia americana se apóia num
protecionismo amplo e vigoroso, dirigido em importações que podem
concorrer com seus produtores internos. Nem o bloqueio a Cuba é
condenado com a devida veemência. Não se perde uma única oportunidade
para cobrar o velho alinhamento automático, sempre que surge algum
arranhão no continente.
A partir de eufemismos como “investidores externos,” “imagem no
exterior” e outros, as referência dessas análises é sempre uma pergunta:
como os EUA vão reagir? Vamos sofrer retaliações?
Sempre que há um desentendimento entre as partes, ou mesmo um conflito, a
opinião nunca se modifica. A razão está sempre do lado de lá da
fronteira.
Como Obama, muitos observadores não conseguem enxergar uma mudança na realidade.
É por isso que passaram os primeiros meses do governo Dilma anunciando
uma grande modificação em nossa política externa. Achavam que ela viria a
partir de uma postura menos nacionalista da presidente.
A tese é que, livre do sapo barbudo e de seu ministro Celso Amorim, o
Itamaraty iria reconstruir a velha e boa amizade preferencial americana,
de acordo com a máxima deixada por um dos civis do regime militar: “O
que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.”
A viagem de Dilma mostrou que Obama não tem o que oferecer, não pensou nisso e não consegue entender que isso é necessário.
Na mentalidade do porrete, do outro lado da mesma só pode sentar-se um vira-lata.
Concorda?
*Obaservadoressociais
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