Mujica: "Nunca tivemos uma oportunidade como esta"
Via CartaMaior
Durante
a Cúpula Extraordinária do Mercosul, o presidente uruguaio, José
Mujica, fez um profundo resgate histórico para situar o atual momento
político da região e defender a importância estratégica da integração
dos países do continente. "Nunca ao longo da história da América Latina
tivemos uma oportunidade como esta. Existe uma vontade política de
integração, como nunca houve globalmente na América do Sul".
Vinicius Mansur
Brasília
- Dentre os discursos dos quatro presidentes presentes à Cúpula
Extraordinária do Mercosul, em Brasília, nesta terça-feira (31), o de
José Mujica, presidente do Uruguai, foi o que ganhou menos amplificação
jornalística brasileira. Talvez por se tratar do país de menor economia,
população e território, em comparação com Brasil, Argentina e
Venezuela. Talvez por se tratar do presidente mais comedido e entre os
quatro. Talvez por seu espanhol de difícil compreensão aos ouvidos dos
lusófonos. Ou talvez porque o conteúdo de sua fala não seja palatável à
linha editorial de boa parte da mídia local.
O
certo é que o presidente uruguaio fez um profundo resgate histórico para
situar o atual momento e defender a importância estratégica da
integração dos países do continente. Confira a íntegra do discurso:
"Bom amigos, depois desse furacão (referia-se ao discurso de Hugo Chávez, que o antecedeu) o que pode dizer um humilde paisano.
É
muito grande a dívida social que temos nesse continente. Talvez o mais
rico da Terra, mas é bom que lembremos que é o mais injusto de todos os
continentes. Esse é o preço que pagamos ao longo de nossa história
porque vivemos muito tempo olhando para o resto rico e sem olharmos
entre nós.
Cada porto importante terminou
vertebrando um país. Era muito mais importante a conexão com o mundo,
com a cultura européia. Para qualificar os universitários, há 70 anos,
tinham que ir a Paris. Nossos homens de arte tinham que visitar a
França, nossos homens de empresa tinham que ir a Grã Bretanha. Nossa
linguagem, nossa moda, nossa vestimenta quase ignorava a sorte de nossos
vizinhos.
Terminamos gerando uma cultura
particular de opressão dos povos aborígenes que em muitas partes ficaram
postergados, analfabetos e esquecidos e constituem uma espécie de
coluna vertebral dessa dívida ao longo de toda a Cordilheira dos Andes.
Estamos
tentando refazer nossa história porque vivemos no continente mais rico
em matéria de recursos e o mundo deu uma virada inesperada. Quando
éramos jovenzinhos a Cepal nos dizia “que horrível a desvantagem dos
termos de intercâmbio”. Não sei o que aconteceu. E mudaram as relações
no mundo. Hoje, paradoxalmente, o mundo industrial está em crise. E nós
estamos quase historicamente acostumados que quando o mundo rico está em
crise, pobre de nós. No entanto, parece que os que estão pobres são
eles e que nós estamos levando muito bem.
Nossos
emigrados à Europa voltam. É que agora houve tanto acerto em nossas
políticas, ou um pouco de acerto porque a dor ensinou, ou estamos em
outro mundo. O certo é que nunca ao longo da história da América Latina
tivemos uma oportunidade como esta.
Houve
homens grandes, gigantescos por sua visão. Contudo, os coroou o fracasso
porque o compasso histórico não os acompanhava. Hoje há uma força de
caráter histórico que colabora e, paradoxalmente, nesta América
começamos a encontrar-nos. Existe vontade política de integração, como
nunca teve globalmente a América do Sul. Eu repito: como nunca teve!
Não
se trata de quem está na liderança política conjunturalmente, de uma
superioridade, como gigantes do passado. É que estamos em outro momento
histórico. E temos que ser conscientes: agora ou nunca!
E
o desafio é enorme porque, por um lado, o Estado nacional não pode ser
uma armadilha, nossa formação cultural, de onde viemos, nos pode ser uma
armadilha. E a mesquinhez de nosso raciocínio pequeno pode contribuir
em multiplicar os obstáculos.
Ademais, basta o
que indicou a presidente argentina: o olhar e o trabalho de outros,
colocando paus na roda, e nossas quintas colunas internas, invitáveis
pelos interesses de classe, chave em todo este debate de caráter
histórico.
Os mais pobres, a gigantesca
maioria não encontra e não resta consciência para expressar-se. Está se
expressando um pouco através do verbo solidário de minorias intelectuais
que encabeçam os partidos que mais pensam pelo povo. As grandes
maiorias estão ali, como que contemplando esse debate.
Nosso
dever é incluí-la. E que participe. E que se dêem conta que aqui se
está jogando o seu futuro de caráter histórico. A história do futuro não
pode ser escrita pela gente que lê dois diários por dia. A história do
futuro tem que ser escrita pela gigantesca multidão que ainda são nosso
exército de reserva que está ali, lutando por viver, por conquistar o
mínimo. Os postergados, os esquecidos, os acumulados, os que são a causa
perdida, mas que no fundo expressam nossa nacionalidade, nossas
instituições, filhas do feudalismo que sobrevivia dentro da república.
Nossa
verdadeira causa está nos anônimos que andam por aí, na multidão,
anônimos, com os quais temos uma causa de caráter histórico e uma
tremenda dívida. Não nos esqueçamos porque, caso contrário, não teremos a
força do desafio e do embate que temos pela frente. Obrigado Venezuela,
contigo o Caribe. Quantas ilhas postergadas, que falam inglês ou algo
parecido ao inglês. Também irmãos postergados pelo que vieram, pelo que
trouxeram os barcos de escravistas. A semeadura de dor que se fez nessa
América. Nunca nos esqueçamos disso. A dívida que temos com a negritude,
tudo isso compõe esse crisol de causa, de dor, de povo, de angústia, de
esperança que fica pela frente.
Por isso,
alguém disse que tem que se somar os homens de empresa tratando de criar
o sistema de empresas multinacionais. Tem que somar-se também os
trabalhadores. Tem que somar-se também os trabalhadores! Os que andam de
camisa, os que andam em sandálias. Em alguma forma a pata popular da
história tem que se sentar nas decisões desse Mercosul. Porque, do
contrário, não será o suficientemente democrática e isso é parte de
nossa luta. Obrigado, companheiros".
Tradução: Vinicius Mansur
Fotos: Wilson Dias/ABr
*GilsonSampaio
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