Novo intervalo na Europa
Na análise de um dos tempos mais instigantes da Europa, o do entardecer do Império Romano e da chegada da Idade Média (La fin du monde antique et le debut du Moyen Age), o historiador francês Ferdinand Lot usa uma frase de forte atualidade: Reste une grandeur caduque, même malfaisante.
Passados os 500 anos desta Idade Moderna, os observadores isentos,
desatados dos compromissos contemporâneos, terão a mesma idéia da Europa
de nosso tempo. E sobre o que dirão os historiadores futuros, não há
dúvida. A Europa que enfrenta a crise do euro, uma das faces da crise
maior, a da identidade do continente, vive hoje, como Lot descreveu a
Europa da Alta Idade Média, os restos de uma grandeza caduca, e, mais do
que isso, malfazeja.
O historiador escreveu seu livro mais conhecido nos anos 20, entre as
duas grandes guerras que assolaram a Europa e boa parte do mundo. Apesar
de todos os motivos políticos e econômicos, que levaram à eclosão dos
conflitos, havia, e continua a haver, uma razão mais profunda, que a
inteligência do homem não está sendo capaz de administrar. De repente, e
em dupla perplexidade, o homem se vê, ao mesmo tempo, como todo
poderoso senhor da natureza, e ser frágil, inerme, diante do cosmos. E,
por mais crentes que todos pareçam ser, nos cultos das várias confissões
religiosas, há sempre uma dúvida, que vai além do monólogo de Hamlet.
Não se trata de saber se somos ou não somos, mas o que somos e o que não
somos.
O homem que pensa mais além das ficções que lhe oferece o poder, duvida
da existência de Deus, mas não encontra, na ciência, verdade que o
console, e não dispõe de outra idéia de salvação que não seja a da
investigação da natureza e do cosmos. Por isso mesmo saúda a chegada de
um laboratório teleguiado a Marte nas mesmas horas em que, em Oak Creek,
nos Estados Unidos, uma comunidade religiosa dos sikhs chora seus
mortos. O assassino, tudo indicava, era um racista intolerante, que
teria confundido os fiéis da seita indiana com muçulmanos.
Estamos enviando um engenho a Marte, em busca da vida, enquanto não
conseguimos aceita-la na Terra. A vida é uma aventura da natureza, que
busca transcender-se na inteligência, esse fenômeno em que o grande
psicólogo inglês Cyril Burt vê enigma indecifrável: Como os movimentos de partículas materiais podem gerar esse espetáculo imaterial permanece um mistério.
Por mais os neurofisiologistas, como é o caso do cristão John Eccles,
tenham descrito, com precisão, a atividade dos neurônios e dos nervos –
que são uma extensão da mente – o mistério permanece, em sua
perturbadora imanência.
A crise do euro demonstra que a Europa Unida é apenas um meritório
esforço político, que encontra suas dificuldades na força das razões
nacionais de cada um dos países associados. A realidade do nacionalismo
volta a impor-se, como se impôs em várias ocasiões na Europa, até mesmo
contra os interesses dos reis.
O retorno à Idade Média, com seus distritos feudais, sob o mando da
aliança dos bispos com os barões, e o poder distante de reis e
imperadores, é hoje impossível. A própria Igreja, que vem sendo
contestada por um movimento de retorno ao velho Cristianismo, anterior à
sua associação com o Império, terá que se descentralizar para
sobreviver. O Vaticano é hoje uma instituição sem mistérios, e sem
mistérios todo poder fenece.
Hoje, estamos assistindo ao fim do falso mistério da moeda virtual e de
seus manipuladores, e isso ocorre na Europa, com os euros emitidos pelo
Banco Central Europeu. O euro crescia enquanto a confiança nos dólares
norte-americanos murchava. Quando os governos europeus resolvem também
emitir dinheiro sem lastro, mediante o BCE, a fim de salvar os
banqueiros larápios, com o sacrifício dos povos, como o grego e o
espanhol, sua moeda comum sofre a mesma erosão. A crise do euro é o
resultado da falta de cimento à unidade européia, antes tentada pelas
armas pelos romanos, por Napoleão e por Hitler. Todos eles buscaram a
unidade que se submetesse à hegemonia dos conquistadores. Isso se repete
hoje, com as armas de antes substituídas pela força do poder econômico:
os meios são outros, mas os delegados dos banqueiros, que governam o
BCE, a Itália, a Grécia e a Espanha contam com Angela Merkel - assim
como os grandes financistas se associaram a Hitler, durante a ocupação
da Europa pelo Reich.
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