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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, novembro 17, 2012

O Mensalão e a agenda setting: a "Matrix" na prática




Muito discutida e ainda pouco compreendida, a essência do filme “Matrix” (a hipótese da virtualidade do real) talvez já esteja presente no nosso dia-a-dia mais do que imaginamos. A pesquisa “Agenda Setting e a Cobertura dos Casos Mensalão e Cachoeira” feita por estudantes de jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi São Paulo como conclusão do curso “Estudos da Semiótica” apresenta a constatação de que a mídia corporativa não tem mais o poder de eleger presidentes ou forçar impeachments como no passado, mas ela é eficiente em estabelecer pautas e agendas como a do atual julgamento do chamado “Mensalão”.  Se a hipótese da agenda setting for correta, o que chamamos de “realidade” poderia ser uma construção a partir de percepções e cognições fornecidos por um ambiente midiático em que vivemos.

Virtuosismo tecnológico, capas pretas, bullet time e todo o visual ciberpunk marcaram as representações dos mundos virtuais em filmes como “Matrix”: humanos enredados nos véus da ilusão criada por computadores/demiurgos que nos escravizam. Mas descontando todo esse sensacionalismo hollywoodiano em torno da hipótese da virtualidade do real, podemos nos surpreender ao descobrir que a essência do tema de Matrix já está presente em nosso dia-a-dia, tão diluído nos temas das nossas conversas e na indústria de informação e entretenimento que nem nos damos conta: mais do que uma figura retórica, já há muito tempo experimentamos a Matrix na prática!
        
      Isso é o que demonstra a pesquisa “Agenda Setting e a Cobertura dos Casos Mensalão e Cachoeira”, trabalho de conclusão da disciplina Estudos da Semiótica da Escola de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi – UAM/São Paulo (veja video abaixo). O grupo formado pelos estudantes da graduação em Jornalismo Ana Carolina Cassiano, Cainã Ito, Camila Albino, Gustavo Carratte e Renata Corona analisou as capas e primeiras páginas dos principais veículos de imprensa de alcance nacional e chegou a uma constatação empírica: até o início do segundo semestre o foco dos veículos como jornais “O Globo”, “Folha de São Paulo”, “O Estado de São Paulo” e de revistas como “Veja”, “Isto É” e “Época” “estava concentrado nas repercussões das denúncias envolvendo o contraventor Carlinhos Cachoeira. O julgamento do chamado Mensalão ainda era pouco comentado”.


Quase nada de Cachoeira e
exaustiva cobertura do mensalão
       Com a proximidade das eleições municipais, esse foco midiático foi invertido: “quase nada de Cachoeira e exaustiva cobertura sobre o escândalo envolvendo o Partido dos Trabalhadores (...) Cachoeira permanecia envolvido em acusações, mas já não tinha seu rosto exposto por tanto tempo na TV, jornais, revistas e sites, tampouco era comentado nas rádios”.

          “Tomando como exemplo a revista Veja seis de suas capas no segundo semestre de 2012, quando já estavam próximas as eleições municipais, foram sobre o caso envolvendo o PT. Além destas, mais três tiveram destaque na capa, com chamadas para ler mais denúncias páginas adentro”.

          Para além dos evidentes exemplos de manipulação no enquadramento e seleção dos acontecimentos – desde a tendenciosa pergunta da pesquisa Datafolha no início de agosto (“os acusados do Mensalão deveriam ser enviados para a cadeia?”) e todo o exagero da cobertura que invertia os princípios básicos da Justiça (“que obriga os promotores a comprovarem a culpa do réu e não o contrário”) – a pesquisa associou a inversão da cobertura no segundo semestre ao fenômeno conhecido como “agenda setting” ou agendamento: a mídia não apenas manipula a realidade, mas, principalmente, altera a nossa percepção da realidade. Pode parecer uma diferença sutil a existente entre os termos “manipulação” e “percepção”, mas ela é decisiva por ser mais insidiosa e profunda.

A Hipótese do “agendamento”: já vivemos na Matrix


          Embora o conceito de “agenda setting” tenha sido formulada somente na década de 1970 pelos pesquisadores norte-americanos Maxwell McCombs e Donald Shaw em estudos que analisavam a influência das mídias nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em 1968, seus princípios básicos começaram a ser traçados em 1922 pelas teses levantada pelo jornalista Walter Lippmann.

          Para Lippmann a opinião pública não reagia diretamente aos fatos do mundo real, mas vivia em uma espécie de “pseudoambiente” formado principalmente por “imagens em nossas cabeças” (LIPPMANN, W. Public Opinion). A mídia teria um papel central na estruturação desse pseudoambiente e fornecimento das imagens.

Em 1963 Bernard Cohen deu uma premissa moderna a essa ideia esboçada por Lippmann: “Na maior parte do tempo a imprensa pode não ter êxito em dizer aos leitores o que pensar, mas é espantosamente exitosa em dizer aos leitores sobre o que pensar” (COHEN, B. Press and Foreign Policy). Em outras palavras, a mídia seria péssima em impor conteúdos ou persuadir a opinião pública a tomar um posicionamento “A” ou “B”, mas ela seria ótima em criar uma hierarquia de temas supostamente com pertinência social para ser discutida.

Dessa maneira, Cohen destacou a onipresença da mídia como eficiente modificadora e formadora de opinião a respeito da realidade. Em consequência da pauta de temas criados pelas mídias o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou negligencia certos elementos dos cenários públicos. As pessoas tendem a incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que as mídias incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público pode atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelas mídias aos acontecimentos, problemas e às pessoas. A pauta de fixação feita pelos meios de comunicação perdura no público. Os assuntos nela evidenciados serão comentados pelas pessoas que acabarão julgando os fatos de acordo com essa pauta e percebendo uma realidade social diferenciada.

O filme “Obrigado por Fumar” (Thank You For Smoking, 2005) apresenta didaticamente essa estratégia que está além da manipulação simples pela imposição de determinado posicionamento ideológico: se as pessoas querem ou não fumar cigarro, essa seria uma questão que a mídia teria muito pouca influência. Mas ela seria eficiente em fixar a pauta do tabagismo como tema pertinente para a opinião pública. O filme ironicamente apresenta como a indústria tabagista estaria por trás tanto de pesquisas que demonstrem os malefícios como as que refutam os danos maiores do cigarro. O que importa é que o tema tabagismo ganhe espaço e visibilidade midiática.

Guerra de percepção e sociedade do espetáculo


Pela hipótese da agenda setting não se trataria mais discutir se a mídia influencia ou não determinados conteúdos ideológicos, mas a forma como ela molda a percepção da própria realidade. A pesquisa do grupo de estudantes de jornalismo da UAM destaca: “a mídia já não tem força para decidir quem vai ser o próximo presidente, nem para eleger e forçar o impeachment como no caso de Collor. Mas isso não significa que a mídia corporativa não siga buscando seu intento, através da agenda setting, como agora ao conseguir colocar em pauta o mensalão do PT”.

O mais perturbador nessa hipótese é a de que se a questão da mídia não é de conteúdo (informação), mas de forma (pauta, agenda etc.) pouco importaria se durante o julgamento no Supremo Tribunal Federal ocorresse uma reviravolta, as chicanes jurídicas fossem derrotadas e o mensalão fosse desconstruído diante das câmeras: o mal já teria sido feito após a percepção da opinião pública ter aceito a pertinência do tema “mensalão do PT” como hierarquicamente superior a outros temas.

Filme "Obrigado Por Fumar": um
exemplo didático de "agenda
setting"
A pesquisa da UAM define a guerra pelos agendamentos das pautas nas mídias como a própria natureza da sociedade do espetáculo: embora seus resultados sejam ideológicos, os meios de comunicação seriam pouco afeitos a ideologias, conteúdos ou informações (conscientização, formação, inculcação etc.). Essa eficiência de influência ideológica talvez tenha existido nas antigas sociedades de massa dos tempos da Segunda Guerra Mundial. Hoje, com sociedades mais segmentadas e complexas onde a influência pessoal de líderes de opinião (não confundir com “formadores de opinião” das mídias) como filtros das mídias ganha mais força, a batalha passa a ser por agendas impactantes que alterem a percepção do que seja a realidade para as pessoas.

É claro que após o sucesso do agendamento de um determinado tema, os tradicionais mecanismos de manipulação da informação entram em cena, como ficou evidente na cobertura do caso do Mensalão e nos 18 minutos de espaço dado pelo Jornal Nacional da TV Globo para fazer um “resumo” do julgamento do STF. Isso seria um aspecto técnico-ideológico da edição da informação (que muitas vezes o público nem percebe criticamente) e que é mais compreendido por aqueles predispostos à opinião inquisitorial sobre o PT.

O mais importante é que, em uma sociedade do espetáculo, a conquista de uma pauta ou agendamento já é, em si, uma vitória ao fazer o público discuti-la seja a favor ou contra.

Um argumento contra a eficiência ou existência dessa hipótese seria que apesar de todo o agendamento do caso Mensalão desde 2005 na mídia Lula foi reeleito e fez seu sucessor, Dilma Roussef. Mas, poderíamos dizer: “é a economia, estúpido!”. Duas pautas contraditórias parecem disputar percepção da opinião pública: a moralista da corrupção versus a do crescimento econômico paradoxalmente partilhada até pela TV Globo, por exemplo, com o tema da “nova classe média” em novelas como “Avenida Brasil”.  

Se a hipótese da agenda setting for correta, o que chamamos de “realidade” poderia ser um constructu a partir de percepções e cognições fornecidos por um ambiente midiático em que vivemos. Essa talvez seja a essência do filme “Matrix”. Um filme muito discutido, mas ainda pouco compreendido.

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