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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, janeiro 01, 2013


ANTONIO GRAMSCI: CONTRA O JÚBILO COLETIVO OBRIGATÓRIO

Um belo texto do jovem Antonio Gramsci, fundador, teórico e dirigente do Partido Comunista Italiano, sobre a hipocrisia desta época do ano.

"Odeio o Ano Novo
Avanti! , 1º de Janeiro de 1916.
Toda manhã, ao acordar mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim é o primeiro dia do ano.
Por isso odeio estes anos novos a prazo fixo, que transformam a vida e o espírito humano em uma empresa comercial, com sua prestação de contas, seu balanço e suas previsões para a nova gestão. Eles fazem com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Termina-se por acreditar a sério que entre um ano e outro exista uma solução de continuidade e comece uma nova história; fazem-se promessas e projetos, as pessoas se arrependem dos erros cometidos etc. É um equívoco geral que afeta a todas as datas.
Dizem que a cronologia é a ossatura da história. Pode-se admitir que sim. Mas também é preciso admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais, que toda pessoa conserva gravadas no cérebro, datas que tiveram efeito devastador na história. Também elas são primeiros dias de ano. O Ano Novo da história romana, ou da Idade Média, ou da era moderna. Elas se tornaram tão invasivas e tão fossilizantes que nos surpreendemos a pensar algumas vezes que a vida na Itália começou em 752, e que 1490 ou 1492 são como montanhas que a humanidade ultrapassou de um só golpe para entrar em um novo mundo e em uma nova vida. Com isso, a data converte-se em um fardo, um parapeito queimpede que se veja que a história continua a se desenvolver de acordo com uma mesma linha fundamental, sem interrupções bruscas, como quando o filme se rompe no cinematógrafo e se abre um intervalo de luz ofuscante.
Por isso odeio a passagem do ano. Quero que cada manhã seja um ano novo para mim. A cada dia quero ajustar as contas comigo mesmo e renovar-me. Nenhum dia previamente estabelecido para o descanso. As pausas eu escolho sozinho, quando me sinto embriagado de vida intensa e desejo mergulhar na animalidade para extrair um novo vigor. Nenhum travestismo espiritual. Cada hora da minha vida eu gostaria que fosse nova, ainda que vinculada às horas já transcorridas. Nenhum dia de júbilo coletivo obrigatório, a ser compartilhado com estranhos que não me interessam. Só porque festejaram os avós dos nossos avós etc., teremos também nós de sentir a necessidade de festejar. Tudo isso dá náuseas."
Antonio Gramsci (Ales, 22 de janeiro de 1891 — Roma, 27 de abril de 1937), político, cientista político, comunista e antifascista italiano.
*Nina

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