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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, julho 29, 2013

Ui, quebraram a santa



por  Mary W., da revista Wireshoes

"Geralmente, em virtude do papel que assume a religião na vida das mulheres, a menina, mais dominada pela mãe do que o irmão, sofre mais, igualmente, as influências religiosas. Ora, nas religiões ocidentais, Deus Pai é um homem, um ancião dotado de um atributo especificamente viril: uma opulenta barba brancal. Para os cristãos, Cristo é mais concretamente ainda um homem de carne e osso e de longa barba loura. Os anjos, segundo os teólogos, não têm sexo, mas têm nomes masculinos e manifestam-se sob a forma de belos jovens. Os emissários de Deus na terra: o papa, os bispos de quem se beija o anel, o padre que diz a missa, o que prega, aquele perante o qual se ajoelham no segredo do confessionário, são homens. Para uma menina piedosa, as relações com o pai eterno são análogas às que ela mantém com o pai terrestre; como se desenvolvem no plano do imaginário, ela conhece até uma demissão mais total. A religião católica, entre outras, exerce sobre ela a mais perturbadora das influências.

A Virgem acolhe de joelhos as palavras do anjo: “Sou a serva do Senhor”, responde. Maria Madalena prostra-se aos pés de Cristo e os enxuga com seus longos cabelos de mulher. As santas declaram de joelhos seu amor ao Cristo radioso. De joelhos no odor do incenso, a criança abandona-se ao olhar de Deus e dos anjos: um olhar de homem". (Beauvoir, Introdução ao volume II da Bíblia*, a outra)


Eu tinha um colega, na outra faculdade em que eu dava aula, que era doutor em biologia genética. Uma vez ele chegou puto porque na UNESP/Rio Preto, onde ele fazia o doutorado tinha tido um seminário sobre Evolução e um padre foi convidado para compor a mesa. O coordenador alegou relativismo e respeito à diversidade. E o meu amigo contou como o padre levou slides de fósseis que se pareciam com a Virgem Maria. Os estudantes de pós-graduação em Biologia também ficaram a par da teoria de que fósseis são uma maneira de Deus testar a fé. Aqueles que acreditam (nos fósseis), não passam no teste.

Outro dia fiquei sabendo, também, que a Mix Brasil convidou o pastor Felicianopara debater no 21o Festival sobre Diversidade. Não faço ideia de que fim teve isso. Mas o convite causou alguma polêmica, o que eu acho bom. Cada vez acho melhor.

Acho mesmo que o conceito antropológico de relatividade foi sendo desfigurado ao longo das últimas décadas. Cada vez mais ele parece ser usado para que os grupos conservadores recusem as mudanças com a anuência dos libertários. Feliciano tem o direito de falar num evento sobre diversidade. Um padre leva seu power point num congresso científico. Você pode me falar que não há contrapartida. O padre não abre a missa para darwinistas nem Feliciano deixa a diversidade invadir seus cultos. Mas nem de longe é isso que me preocupa. Porque eu não quero levar meu power point para a igreja. Pelo contrário, pretendo não pisar nelas todas. Sei o suficiente sobre história do cristianismo para considerar que ele não me representa e que nele não brotam as minhas pautas. De acordo com trocentos historiadores, o fundamentalismo é cristão. É nessa doutrina que ele aparece e se cria. Umberto Eco fala sobre isso, Giddens fala sobre isso. Não é difícil ter essa informação.

Eu não vou ficar repassando aqui a história da Igreja Católica especificamente. Várias pessoas fizeram isso ao longo do dia. O meu ponto aqui é bem outro. É como chegamos a isso. A Srta. Bia postou, no FB, um clipe da música Igreja, dos Titãs. Cito um trecho da ~subversiva~ canção:

Eu não gosto do terço
Eu não gosto do berço
De Jesus de Belém.
Eu não gosto do papa
Eu não creio na graça
Do milagre de Deus

Eu fiquei pensando nisso. Que eu fui adolescente na década de oitenta e essas coisas eram simplesmente lançadas. A Vida de Brian não causava debate nem tsc tsc doWilliam Bonner. E aí eu fico realmente pensando se esse relativismo aplicado ao indivíduo e seus problemas não acabou nos trazendo a um ponto em que nada de ~sagrado~ pode ser realmente criticado. Parece haver um pânico em ser chamado de intolerante e uma necessidade de mostrar respeito àquilo que nos agride. A máxima “toda religião é boa, o importante é ter uma” ganha caráter de verdade universal. No mundo do fragmento, as pessoas se utilizam das engrenagens duramente forjadas pelos oprimidos (a fim de sobreviverem) para manter o status quo inalterado. Sim, eu posso dizer e cantar que eu não gosto do berço de Jesus. Sim, é possível isso. Mais. Faz parte de uma rebelião secular. Enfrentar os símbolos da santa Igreja é uma forma de dizer não, ela não detém a verdade. Não, eu não acredito nela. Sim, eu posso dar de ombros pros ensinamentos que ela propõe.

Mas eu fico triste demais quando alguém zomba da minha fé. Mas eu choro quando alguém questiona os meus dogmas. É a senha do relativismo individual para que todos nós recuemos. Eu não recuo. E não quero deixar VOCÊ triste. Não sei como pode ser tão difícil perceber que a crítica está direcionada para a instituição Igreja. Claro que eu já sei também que vivemos o tempo da emoção e do afeto. E que a racionalidade, talvez por suas próprias limitações, tenha sido abandonada na elaboração de argumentos. A nebulosa afetual que nos fala Maffesoli. Acho que todos já percebemos que estamos diante desse novo tempo. E que toda e qualquer crítica é lida como uma desrespeito à pessoa. No episódio da santa, foi dito que os 3 milhões de fiéis ali foram agredidos. Por dois militantes nonsense de uma Marcha horizontal e livre.

O que eu vejo é que nenhuma ação anticlerical é possível. Tudo que eu fizer é uma agressão individual. Caso de polícia. Quebrei uma santa. Nossa. Violei a liberdade religiosa e impedi o culto. O que me resta é ver o Papa passar. Minha proposta (sim, eu tenho uma proposta, a loka etc) é que enfrentemos. Vamos voltar a dizer que as religiões cristãs se erguem sobre uma cultura do ódio. Que historicamente eles tem impedido as pessoas de existirem. Impediram negros, índios, mulheres, gays, muçulmanos. Que eles nunca abandonaram a guerra santa. Que ~respeitar~ o discurso deles é legitimar o ódio. Que a Virgem Maria não é uma imagem feminina. É uma das imagens mais machistas já criadas pela cultura humana. Que não existem mulheres na Igreja deles. Elas lavam os pés e puxam o saco de homens. Que Simone de Beauvoir já dissecou A Religiosa (ou A Mística) no segundo volume de O Segundo Sexo. A liberdade mistificada da mulher, promovida pelas religiões, bem como a aniquilação da carne da mulher religiosa. Estranhamente, as feministas que apoiaram os manifestantes também fazem ressalvas individualista. “Eu não faria isso“, “eu respeito quem não respeita mas não faria“. Um espiral de justificativa que para mim é o cerne da questão: ´para combater criacionismo, cartilha bioética papal e que tais PRECISAMOS enfrentar as religiões. Ué. Não teve outro jeito. Até chegarmos nessa sinuca teórica. Se-eu-critico-não-respeito. É uma falsa sinuca. O relativismo é um método de compreensão. Não é a aceitação de todas as práticas e discursos. Podemos sair do armário. Podemos dizer que falta senso crítico àqueles que sacralizam um homem segundos depois da fumaça vaticana. O preço que estamos pagando por não enfrentar é alto demais. Cada vez mais vemos pastores e padres invadindo o Estado. Cada vez mais abaixamos a cabeça e dizemos “ó, mas eles tem o direito de estar“. Como se não soubessemos o que eles fazem quando tem o Estado nas mãos. Ao invés de ficarmos dizendo sem parar que não quebraríamos santa, está na hora de dizer que cagamos e andamos se uma santa foi quebrada.

Para terminar, conto uma história mil vezes por mim repetida. No meu primeiro ano de docência, durante uma aula sobre dimensão simbólica, falei de religião. E acabei falando de santos. E disse assim “até bem pouco tempo atrás as pessoas acreditavam em santos“. A sala ficou em silêncio. Um aluno levantou a mão. Disse que ainda acreditava. Outras pessoas levantaram a mão para dizer o mesmo. Oh, captain, my captain ao avesso. Essa é minha história docente. Mas eu soube, então. Que não estava mais no Kansas e ouvi os portões da faculdade de sociologia se fechando atrás de mim. Saí da ilha sem bóia. Eu já entendi isso. Mas, nossa. Tô preparada pra visita de Papa não. E muito menos para uma geração que se exime de enfrentar uma visita dessa.

*Pode queimar um exemplar, se você quiser :)

PS:  no twitter, várias pessoas reclamaram. de como esse assunto é chato etc. não me enganam. carolas disfarçadas.

*Opensadordaaldeia

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