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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Uruguai na frente, por Vladimir Safatle




O presidente do Uruguai, José Mujica, entrará para a história latino-americana como alguém que colocou de vez a pauta da modernização de costumes no centro da política. Em seu governo, o Uruguai aprovou a legalização do aborto, o casamento homossexual e, agora, uma ousada legislação de regulamentação da produção e do comércio de maconha.
O Uruguai partiu de uma constatação cada vez mais assumida nos debates internacionais sobre o problema: “A guerra contra as drogas fracassou”. A abordagem policialesca hegemônica é cara e ineficaz, além de infantilizar o debate ao considerar todo consumidor de droga um viciado, ainda que potencial.
Por mais que isso possa parecer estranho a alguns, não há princípio moral que justifique a proibição do uso de drogas por adultos responsáveis por seus atos. As modalidades de prazer do corpo, bem como a decisão sobre os alimentos e substâncias que consumo, são fruto de deliberações individuais. Cabe ao Estado simplesmente alertar seus cidadãos sobre os riscos de suas decisões.
Dois argumentos poderiam ser contrapostos a essa maneira de pensar o problema do uso das drogas. Primeiro, usuários de drogas estariam, necessariamente em situação de perda de autonomia. O argumento é ruim por não distinguir usuários esporádicos daqueles que têm estrutura patológica de drogadição.
Segundo, haveria uma equação indissociável entre droga e violência. Assim, combater a primeira seria, necessariamente, diminuir a segunda. No entanto, há duas violências pressupostas aqui. A primeira é resultado exatamente do tráfico e da ilegalidade do comércio de drogas. Nesse sentido, a lei uruguaia é astuta ao criar um mecanismo estatal capaz de retirar a produção da maconha das mãos de grupos criminosos.
Por outro lado, haveria a violência resultante da pretensa modificação de comportamento de quem consome drogas. O problema é que, no caso da maconha, o argumento é risível, assim como é risível o argumento de que ela seria necessariamente uma porta de entrada para o consumo de drogas mais pesadas.
Note-se ainda que nunca houve e, provavelmente, nunca haverá sociedade sem drogas. Assim, melhor do que ficar à procura de um paraíso onde elas não existiriam, procura que no mais das vezes só consegue produzir infernos, é saber como viver com elas. É bem provável que muito de seu consumo seria diminuído se nossas sociedades retirassem a aura transgressiva das drogas.
Ao abandonar a lógica da guerra, os governos poderiam enfim pautar suas políticas pela lógica médica da discussão sobre o uso e seus riscos, como já é feito com bebidas e cigarros.
vladimir safatle
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo)
*coletivoDAR

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