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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, setembro 12, 2014

defendendo as ideias da classe média e dos ricos, ideias que em vários sentidos vão prejudicá-lo no futuro



Quando eu criei esse termo eu pensava muito especificamente em um tipo de indivíduo bastante comum em nossa sociedade, aquele que é pobre, porém, acredita nos conceitos e princípios produzidos pelas elites para justificar as desigualdades como algo natural. É um tipo de pessoa que se acha da elite e pensa que logo irá melhorar de vida, que aquela sua situação é passageira e que as causas sociais de seus problemas vem não da exploração, mas da quantidade de conquistas conseguidas pelos sindicatos e pelos direitos humanos, que atrapalham o andar natural das coisas e não o deixa sair da pobreza. Trata-se de um tipo de indivíduo tão colonizado culturalmente que ele pensa pela lógica daquele que lhe causa a condição de pobreza e se vê espelhado nesse, se tornando distante de sua própria condição social, que para ele é uma questão meramente momentânea. Ele arraiga em si todo o discurso das elites e o corrobora, se vendo como parte integrante daquele grupo social, como superior aos demais pobres que vivem ao seu redor e que possuem as mesmas condições que ele.

Em outras palavras, é um indivíduo que mesmo sendo pobre, sendo de origem humilde, se acha superior aos demais a sua volta, se acha mesmo um indivíduo especial, que tem mais capacidade de raciocínio, que tem maior censo crítico e, ao mesmo tempo, corrobora todos os discursos da direita e costuma ter aversão ao povo e a tudo o que é do povão, a tudo o que é popular. Ele valoriza coisas estrangeiras como as músicas, filmes, cultura, acha o Brasil e o restante do terceiro mundo um lugar ruim, patético, que não é sério, sempre comparando esses lugares com países como o Canadá, Eua, Suécia, Suíça e outros países, não levando em conta o processo que fez esses países se desenvolverem e nem os processos históricos da produção da sociedade brasileira.

Esse indivíduo também tem um grande ódio para com os movimentos sociais, com as esquerdas e crê em uma meritocracia em que basta que o indivíduo se esforce para conseguir tudo o que deseja, como se não houvesse qualquer tipo de desigualdade e de diferença de oportunidades entre o filho de um gari e o filho de um médico. No fim das contas ele se acha superior aos demais, se vê como um pobre que logo irá vencer na vida ou que ainda não venceu devido às implantações de cotas e de coisas do tipo, o que estaria barrando a sua ascensão.

O termo foi inspirado em um personagem clássico do seriado mexicano Chaves, muito popular no Brasil. Esse personagem, Dona Florinda, vive de aluguel em um pobre cortiço, sobrevivendo com o filho da pensão deixada pelo seu marido, que morrera no exercício do ofício de marinheiro. É uma senhora que passa boa parte do dia ocupada com os seus afazeres domésticos, principalmente estendendo roupa no varal comum da vila (onde ocorre a maior parte das cenas da série). Ela usa rolinhos na cabeça e um vestido simples, com um avental. Mesmo vivendo nessas condições, ela se entende como uma pessoa da alta sociedade, debocha e se desfaz das pessoas que moram ao seu redor por se entender como parte da elite e ensina isso ao seu filho, usando muitas vezes uma frase clássica dita ao seu filho: “Não se misture com essa gentalha!”.

No Brasil há muita gente com uma forma de pensar muito semelhante, o que eu comecei a chamar de Complexo de Dona Florinda. Trata-se de pessoas de origem pobre e que ainda vivem em certo grau de pobreza, mas que abominam as pessoas ao seu redor, se entendem como diferentes, se acham mais inteligentes, mais estudadas, (quase nunca são realmente mais estudadas, mesmo assim se julgam mais instruídas), superiores, com uma compreensão mais clara do mundo.

Eles entendem as pessoas ao seu redor como ignorantes e manipuláveis. No caso do Brasil, muitas vezes ainda existe a questão “racial”, ou seja, o indivíduo ainda se entende como branco, mesmo que seu rosto no espelho mostre outra coisa.

Então, para se diferenciarem eles adotam o discurso da elite, para serem como a elite, para se sentirem como a elite. Passam a concordar com os pensadores da elite, com os jornais, jornalistas e revistas que as elites possuem e passam a dizer o mesmo discurso das elites e a votar nas elites. Não é por acaso que vemos alguns pobres contra o bolsa família, contra o Prouni, contra o Fies, contra o Minha Casa, Minha Vida, para não falar em outras questões, ao mesmo tempo em que acham uma boa medida as privatizações, desejam pena de morte e adoram criticar qualquer medida que tenha por objetivo dar oportunidade aos mais pobres.

Esse é o complexo de Dona Florinda, uma situação em que o pobre passa a pensar como o rico, defendendo as ideias da classe média e dos ricos, ideias que em vários sentidos vão prejudicá-lo no futuro, que vão tirar seu emprego, a sua bolsa de estudos ou a de seu filho, que vão criar arrocho salarial exatamente para ele, que ganha salário mínimo. Mesmo assim ele continua, pois ele se entende diferente dessa situação. Por fim ele vota no rico e desenvolve um grande ódio a quem defende direitos iguais aos mais pobres.

Átila Siqueira é Historiador, Bacharel em História pela PUC-MG e Mestrando em História, pelo programa de pós-graduação em História da UFMG, na linha de História e Culturas Políticas.

http://brasilemdiscussao.blogspot.com.br/2014/09/criei-esse-termo-eu-pensava-muito.html

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