Doutor, e o Juiz também vota?
Mulher grávida na comemoração de aniversário da Revolução dos Cravos, em Lisboa. Foto: Reuters.
Doutor, e o Juiz também vota?
Gerivaldo Alves Neiva, Juiz de Direito, 04.10.2010
No
último domingo, depois de resolver os problemas normais do início de
uma eleição, fui votar em minha seção eleitoral e ao cumprimentar as
pessoas que estavam no local, uma delas me perguntou com espanto: “Doutor, e o Juiz também vota?”
Expliquei à pessoa que o Juiz também é eleitor e que, além de ser
obrigatório o voto, o Juiz também tem responsabilidades com a democracia
e com o futuro do país.
Votei
com muita alegria. Verdade. Sinto uma alegria enorme quando vejo a
fotografia de meu (minha) candidato(a) na urna eletrônica e aperto a
tecla verde. É uma sensação de poder e responsabilidade. Neste momento,
esqueço por alguns segundos que sou Juiz de Direito e me sinto apenas
como eleitor e cidadão brasileiro. Pena que votamos tão pouco. Na
democracia representativa, na verdade, apenas delegamos poderes àqueles
que escolhemos como representantes. Em uma democracia com participação
mais direta, votaríamos muito mais e talvez o povo fosse mais feliz.
Pois
bem, chegando ao fórum fiquei pensando na pessoa que me perguntou sobre
o voto e na curiosidade natural que demonstrou em saber em quem votaria
o Juiz. No momento, desconversei e disse que o voto era secreto. Na
verdade, o artigo 95, parágrafo único, da Constituição Federal, proíbe a
todos os juízes “dedicar-se à atividade político-partidária”.
Esta proibição, no entanto, não impede e nem tem como impedir a
vinculação do Juiz com uma concepção de mundo, com uma ideologia adotada
por um determinado partido ou por uma filosofia política.
É
esta concepção que o Juiz tem do processo histórico e político,
portanto, que define seu voto. Mesmo que não tenha consciência disso, é
sua formação (conceitos e pré-conceitos), seu “lugar no mundo” e seu “horizonte histórico”
que lhe servem de parâmetro para a vida e para suas decisões. Portanto,
não existe Juiz neutro diante de uma eleição para escolher governantes.
Ele sempre terá um lado, mesmo que insista na tese da neutralidade.
Aliás, ao insistir nesta tese, mesmo sem saber, está preferindo não se
posicionar diante do mundo, ou seja, prefere que tudo fique como está.
Este, portanto, é o seu lado.
Não
se confunda, por favor, neutralidade com o comportamento garantidor de
um processo eleitoral que respeite os direitos fundamentais,
principalmente a liberdade de opinião e igualdade de oportunidades na
propaganda eleitoral. São condutas absolutamente diversas. Nesta
compreensão, a imparcialidade do Juiz significa garantir os direitos
fundamentais das partes. Cumprir a Constituição, isso é o bastante.
Aliás, como diz um professor aqui da Bahia, “neutro é marca de sabão”.
Voltando
ao começo, eu, de minha vez, nasci no interior da Bahia no ano de 1962 e
tudo que me lembro dos primeiros anos de resistência à ditadura militar
eram as recomendações dos pais e professores contra um perigoso “terrorista”
que rondava o sertão da Bahia no início dos anos 70. Anos mais tarde,
fui saber que se tratava de Carlos Lamarca. Já adulto, estive no local
em que Lamarca ficou acampado com Zequinha, no povoado de Buriti
Cristalino, em Brotas de Macaúbas-Ba. Não consegui entender o que fazia
Lamarca entre aquelas serras, garimpos de cristal e caatingas... Depois,
em Salvador, silenciosamente, passei alguns minutos em frente ao
edifício, na Rua Minas Gerais, no bairro da Pituba, onde Iara,
companheira de Lamarca, teria cometido o suicídio. Não sei descrever a
sensação de estar nesses lugares...
Em
Salvador, no final dos anos 70, participei de movimento estudantil, da
luta pela anistia e do congresso de refundação da UNE, em 1979. O
movimento estudantil, o ME (eme é) como chamávamos o movimento, foi uma grande escola. Como era excitante ler textos clandestinos e rotular os colegas de “stalinistas”, “leninistas” ou “trotskistas”. Éramos todos “marxistas”, com certeza, mas talvez Marx não fosse tão “marxista” como alguns de nós naquela época.
Na faculdade de Sociologia, da UFBa, conheci professores “marxistas” de várias linhas, kantianos, neo-kantianos e outros que rotulávamos apenas de “reaças”. Na faculdade de Direito, da UCSal, conheci apenas professores dogmáticos, ortodoxos e extremamente positivistas. Verdadeiros “reaças”. Fugiam de Marx como o diabo da cruz. Camiseta com a estampa de Guevara? Nem pensar.
Depois, veio a campanha das “diretas já”, a eleição de Tancredo, o impeachment de Collor, o neoliberalismo de FHC e a não menos neoliberal “era Lula”.
Os eleitores de primeiro voto, agora aos 16 anos, eram crianças nessa
época recente de nossa história. Muitos não sabem, não por culpa deles,
que desfrutam hoje da liberdade porque muitos lutaram e morreram por
isso. A redemocratização do país não foi uma dádiva dos militares, mas
uma conquista do povo brasileiro.
Em
1983, quando ainda era estudante de Direito e integrava a Associação
dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR-Ba.), participei do
congresso de fundação da CUT - Central Única dos Trabalhadores, como “associação pré-sindical”,
em São Bernardo do Campo (SP), no pavilhão da antiga Companhia
Cinematográfica Vera Cruz. Este foi um grande momento da luta da classe
trabalhadora brasileira e eu me orgulho muito de ter participado. Era
agosto e fazia frio nas madrugadas de São Bernardo do Campo, mas depois
de algumas doses de 51 e discussões acaloradas, o frio deixava de
incomodar a nós nordestinos acostumados com sol e calor.
Saí
da faculdade de Direito em 1984 (o curso de Sociologia ficou pelo
caminho) e advoguei por seis anos antes de ingressar na magistratura.
Minha advocacia, como resultado do engajamento político durante o curso
de Direito, foi quase sempre para os movimentos sociais e sindicatos de
trabalhadores rurais e urbanos.
Ingressei
na magistratura da Bahia em 1990, por mérito e muito estudo, e não
tenho o que reclamar da vida, da profissão e da estabilidade financeira
que adquiri depois de quase 30 anos de trabalho. Não estou cansado e não
perdi a esperança. Continuo trabalhando e estudando e sempre com muito
prazer. Não tenho a menor dúvida de que faria tudo outra vez.
Voltando
ao começo mais uma vez, desde quando descobri que Lamarca não comia
criancinhas no interior da Bahia, mas que lutava por um país melhor para
todos os brasileiros, decidi que deveria também perseguir este sonho.
Portanto, minha advocacia e minha atuação na magistratura sempre se
pautaram por este norte, ou seja, sempre pensei mais nos outros, na
liberdade e em um mundo mais justo e fraterno.
Portanto,
esta história e esta forma de ver o mundo definem meu voto. Outras
histórias de vida e outras formas de ver o mundo, sem dúvidas, definem o
voto de outros juízes. Não se trata agora, como fazíamos antigamente
nas acaloradas discussões do movimento estudantil, de rotular colegas de
“certos” e “errados”, “marxistas” e “reaças”,
mas de defender que não existem juízes neutros e que todos votam de
acordo com sua própria história e sua forma de compreender e interpretar
o mundo.
Por
tudo isso, não penso em mim na hora de votar. Penso apenas nos milhões
de excluídos e marginalizados desse país. Penso em um país sem fome e
sem miseráveis. Penso na liberdade. Penso na justiça e me deixo levar
pela canção...
Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade nos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero o vinho e o pão
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver
São José da Costa Rica, coração civil
Me inspire no meu sonho de amor Brasil
Se o poeta é o que sonha o que vai ser real
Bom sonhar coisas boas que o homem faz
E esperar pelos frutos no quintal
Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder ?
Viva a preguiça viva a malícia que só a gente é que sabe ter
Assim dizendo a minha utopia eu vou levando a vida
Eu viver bem melhor
Doido pra ver o meu sonho teimoso, um dia se realizar.
(Coração Civil, Milton Nascimento e Fernando Brant)
Nenhum comentário:
Postar um comentário