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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, dezembro 16, 2010

O bispo e o cônsul, estranhas conversas








De volta à lida em São Paulo, ao final da tarde chuvosa desta terça-feira, vindo de três dias no Ceará, após um vôo tenebroso, dou uma rápida olhada nos jornais daqui e me surpreendo mais uma vez com declarações feitas por uma eminência da nossa querida Igreja Católica, desta vez o cardeal Scherer.
“Para arcebispo de SP, Bolsa Família causa distorções, revela WikiLeaks”, diz a chamada de capa da Folha, e meu espanto aumenta quando leio a matéria inteira na página A13.
Nem foi tanto pelo que ele falou sobre o Bolsa Família, segundo os telegramas da diplomacia norte-americana agora revelados. O que mais me chamou a atenção nesta história foi o fato do cardeal arcebispo dispôr do seu valioso tempo para conversar sobre variados assuntos nacionais, tendo como privilegiado interlocutor o cônsul-geral dos Estados Unidos, Thomas White.
Como responsável por um rebanho de milhões de fiéis com tantos desafios espirituais e sociais na cidade de São Paulo, que certamente já existiam quando ele conversou com o diplomata, em outubro de 2007, penso que outros assuntos poderiam ocupar o coração e a mente de dom Odilo Scherer.
Na opinião dele, segundo o jornal, o Bolsa Família ajuda as famílias pobres, “mas transformou-se numa ferramenta eleitoral que distorce o sistema político”. Fantástico! O cônsul-geral deve ter ficado muito preocupado e acionado imediatamente a CIA para investigar esta grave denúncia. A culpa, claro, é do governo federal e do PT, de acordo com o relato do cardeal ao diplomata americano.
Até por ter chegado agora de mais uma viagem ao Nordeste, e ser testemunha da verdadeira revolução econômica e social vivida por aquela região nos últimos anos, e não só por causa do Bolsa Família, é óbvio, gostaria de saber do cardeal como ele chegou a esta brilhante conclusão.
Por acaso, dom Scherer já se deu ao trabalho alguma vez de ver com seus próprios olhos o que está mudando na vida do nordestino, longe dos palácios e dos gabinetes, lá nos sertões e nos grotões onde o povo vive?
Conversou com algumas das mais de 11 milhões de famílias beneficiadas pelo programa para conhecer seus sonhos e aflições?
Interessou-se em saber o que está acontecendo em torno do porto de Suape, Pernambuco, onde antigos cortadores de cana, homens e mulheres, viraram metalúrgicos bem remunerados na indústria naval, por exemplo?
Para não perder a viagem, na mesma conversa o cardeal afirmou ainda ao cônsul-geral que a Teologia da Libertação deixou de ser um “problema sério”.
Misturando questões político-partidárias e programas sociais do país com querelas internas da Igreja, dom Odilo mais uma vez nos prova que as instituições, todas elas, por mais milenares que sejam, dependem sempre das pessoas que as comandam em determinado tempo e lugar.
O que têm hoje em comum a Igreja Católica liderada até outro dia por D. Paulo Evaristo cardeal Arns, que não considerava a Teologia da Libertação um “problema sério” - ao contrário, relacionava-se muito bem com seus membros - , e a Igreja Católica de dom Odilo Pedro cardeal Scherer, a não ser o fato de que ambos ocuparam a cadeira de arcebispo?
Da mesma forma o que tem a ver o Vaticano do papa João 23 com o Vaticano do papa Bento 16?
O atual arcebispo ainda procura explicar ao cônsul-geral americano porque a Igreja Católica está perdendo fiéis para os evangélicos - segundo ele, “por ter falhado na sua missão de aprofundar a fé das pessoas”. Como assim?
É desta forma que o cardeal pretende resgatar as ovelhas perdidas? Ainda na mesma conversa, ele aproveitou para criticar a TV Record, do líder evangélico Edir Macedo, pois “a TV opera como empresa, mas também serve aos interesses dos evangélicos pentecostais”.
Ora, ora, dom Scherer, e não lhe ocorreu dizer nenhuma palavrinha sobre a rede de emissoras de rádio e TV católicas? A quais interesses servem? Por acaso são todas apenas entidades de benemerência mantidas por trabalhadores voluntários?

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