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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, março 15, 2011

O Cristo que vive entre nós


Mauro Santayana

O papa Bento 16, na biografia de Cristo que acaba de publicar, decretou, de sua cátedra, que Cristo separara a religião da política. Mais do que isso, participa de um dos equívocos de São Paulo – porque até os santos se enganam – o de que, se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, “vã é a nossa fé”. Cristo ressuscitou dos mortos, não em sua carne perecível, mas em sua grandeza transcendental. O papa insiste – e nessas insistências a Igreja sempre se perdeu – em que o corpo de Cristo ainda existe, em toda a fragilidade da carne, em algum lugar, ao lado de Deus. Com isso, o Santo Padre separa Cristo da humanidade a que ele pertence, e o situa no espaço da mitologia dos deuses pagãos.


A afirmação mais grave do Papa, de acordo com o resumo de suas idéias, ontem divulgadas, é a de que política e religião são instituições separadas a partir de Cristo. A própria história do Vaticano o desmente. A Igreja Católica – e todas as outras confissões religiosas – sempre estiveram a serviço do poder político, e em sua expressão mais desprezível. Para não ir muito longe na História – ao tempo da associação entranhada entre os reis, os imperadores e o Vaticano, durante a Idade Média -, bastam os exemplos de nosso século. Os documentos existentes demonstram o apoio da Igreja a ditadores como Hitler, considerado, por Pio XII, como “um bom católico”. Mais recentemente ainda, houve a “Santa Aliança”, conforme a denominou o jornalista norte-americano Bob Woodward, entre o antecessor de Ratzinger e o presidente Reagan, dos Estados Unidos, com o propósito definido de acabar com a União Soviética. Por acaso não se trata de uma escolha política do Vaticano a rápida canonização do fundador da Opus Dei, como santo da Igreja, e o esquecimento de grandes papas, como João 23, e de mártires da fé, como o bispo Dom Oscar Romero, de El Salvador?


A religião sempre esteve na origem e na inspiração da política, e, em Cristo, essa identidade comum se torna ainda mais nítida. O campo da razão em que a fé e a política se encontram é o da ética. A ética é uma exigência da fé em Deus e do compromisso com a vida humana. A política, tal como a identificaram os grandes pensadores, é a prática da ética. A ética política significa a busca do bem de todos. Nessa extrema exegese do que seja a ética, como o fundamento da justiça, a boa política é a da esquerda, ou seja, da visão de igualdade de todos os homens.


Em Cristo, a fé é o instrumento da justiça. Quem quiser confirmar esse compromisso político de Cristo, basta ler os Atos dos Apóstolos, e verificar como viviam as primeiras comunidades cristãs, unidas pela absoluta fraternidade entre seus membros, enfim, uma sociedade política perfeita. Ao negar a essencial ligação entre a fé cristã e a ação política, o papa vai além de seu velho anátema contra a Teologia da Libertação, surgida na América Latina, um serviço que ele e Wojtyla prestaram, com empenho, aos norte-americanos. Ele se soma aos que, hoje, ao separar a política da ética da justiça, decretam o fim da esquerda.


Esse discurso – o de que não há mais direita, nem esquerda – vem sendo repetido no Brasil. Esquerda e direita, ainda que a denominação venha da França revolucionária de 1789, sempre existiram. Na Palestina, no tempo de Jesus, a esquerda estava nos pescadores e pecadores que o seguiam, e a direita nos “fariseus hipócritas”, que, no Sinédrio, e a serviço dos romanos, o condenaram à morte.


O papa acredita que a Igreja sobreviverá à crise que está vivendo. Isso é possível se ela renunciar a toda sua história, a partir de Constantino, e retornar ao Cristo que andava no meio do povo, perdoava a adúltera, e chicoteava os mercadores do templo. O Cristo que ressuscitou dos mortos está ao lado dos que vêem a fé como a realização da justiça e da igualdade, aqui e agora.


*beatrice

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