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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, março 16, 2016

Futebol e o projeto de desenvolvimento

Por Caio Botelho

Em meio à grave crise política em curso, muitos se recordam de um dos erros mais graves cometidos pela coalizão que governa o país desde 2003, quando da posse de Lula na presidência: ter subestimado a importância da luta de ideias e da disputa por uma hegemonia ideológica na sociedade em torno de princípios distintos daqueles que vigoram. O resultado, como vemos, é o avanço do conservadorismo mesmo entre a imensa parcela da população que passou a gozar de melhores condições de vida por conta das políticas implementadas nesse período.

Não se constrói outro tipo de sociedade, portanto, sem a disputa da subjetividade. É um erro acreditar que a luta política se dá apenas no marco das formas “tradicionais” de organização, como, por exemplo, a frente eleitoral. Esse ensinamento está presente em todos os intelectuais progressistas e revolucionários dos dois últimos séculos, a começar pelo alemão Karl Marx. O problema é que parte da esquerda, embora reconheça esse pressuposto, não raras vezes o ignora.

São inúmeros os exemplos que podem ser dados sobre as diversas formas que se pode travar a disputa da subjetividade: a luta pela construção de um novo modelo de educação, que transforme as Escolas e Universidades de fábricas de mão de obra em polos de produção e compartilhamento de conhecimento, por exemplo. Ou através da elevação do nível cultural do povo, garantindo amplo acesso a teatros, bibliotecas, cinemas, etc., e com uma cultura cujo conteúdo esteja mais vinculado a valores progressistas.

Mas fiquemos, nesse texto, com o exemplo do futebol.

Porque não há como falar em construção de um novo projeto nacional de desenvolvimento sem conhecer a fundo a identidade que nos caracteriza enquanto povo. E não há como falar em identidade do povo brasileiro sem tratar do esporte que mais move paixões por essa terra: o futebol. Tudo isto está intimamente interligado.

Desse modo, a luta pela democratização do futebol brasileiro deve ser colocada na agenda do campo progressista, na medida em que também interage com outras bandeiras igualmente importantes como, por exemplo, a reforma dos meios de comunicação.

Inclusive foi com esse objetivo que o Barão de Itararé – respeitado centro de estudos sobre a mídia – criou recentemente o coletivo “Futebol, Mídia e Democracia”. A proposta, segundo o manifesto do coletivo, é “debater as relações de poder entre a mídia e as instituições que organizam o futebol brasileiro”. Também criticam duramente a elitização do acesso aos estádios, a ausência de credibilidade da CBF e a influência negativa exercida pela grande mídia (notadamente a Rede Globo).

Assim, travam a luta política e ideológica através de uma bandeira ainda pouco levantada e cuja importância não é bem compreendida pelos setores mais avançados.

Mas vejamos bem: a maioria dos brasileiros torcem por um time de futebol e têm por ele uma relação de afeto que só quem é torcedor pode explicar (ou não). Fazem sacrifícios diversos, vão aos estádios, compram seus produtos, constroem amizades e mesmo inimizades nas discussões sobre o assunto, e por aí vai. Não é errado afirmar que o Clube de futebol é uma das “instituições” com a qual o brasileiro mais se identifica e interage.

Identifica-se muito mais do que com os partidos políticos, com o Congresso Nacional e outras formas de representação institucional, com os Sindicatos, entidades estudantis, associações de bairro, e disputa pau a pau com as poderosas igrejas. Para quem exerce militância nos movimentos sociais é duro admitir, mas essa é a realidade.


E isso não é uma boa notícia. Reflete um baixo grau de compreensão sobre a importância da luta política e é resultado de décadas de uma campanha de despolitização da sociedade, para o qual contribuíram a mídia e os diversos regimes de exceção, como a ainda recente ditadura militar.

Mas e se as pessoas pudessem votar e participar da vida de seu Clube? E se as arquibancadas ganhassem o colorido da diversidade do povo brasileiro com preços mais acessíveis? E se o futebol se tornasse um palco para o combate a preconceitos como o machismo, a homofobia e o racismo, tão presentes junto à sociedade e mais ainda entre os amantes desse esporte? E se os interesses da Globo e dos grandes meios de comunicação fossem contrariados em benefício da maioria do povo?

O resultado disso tudo seria uma sociedade mais antenada, inclusive para aprimorar a sua compreensão sobre a importância do Congresso Nacional, dos Sindicatos, das entidades estudantis, etc.

Portanto, a disputa da subjetividade a que nos referimos se dá também com a disputa daquilo com que o povo se identifica, não apenas daquilo que nós achamos que o povo tem que se identificar. Caso contrário, corremos o risco de falar para nós mesmos, e o pior: acreditar que estamos bombando.

O futebol, de tão popular, pode oferecer valorosas contribuições para a construção do novo tipo de sociedade com a qual sonhamos. Democratizá-lo significa dar passos adiante no sentido de implementar um novo projeto nacional de desenvolvimento.

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