“É necessário saber que,
historicamente, havia duas espécies de escravos: o negro da casa e o
negro do campo. O negro da casa vivia junto do senhor, na senzala ou no
sótão da casa grande. Vestia-se, comia bem e amava o senhor. Amava mais o
senhor do que o senhor amava a ele. Se o senhor dizia: — Temos uma bela
casa. Ele respondia: — Pois temos. Se a casa pegasse fogo, o negro da
casa corria para apagar o fogo. Se o senhor adoecesse dizia: — estamos
doentes. Se um escravo do campo lhe dissesse ‘vamos fugir desse senhor’,
ele respondia: — Existe uma coisa melhor do que o que temos aqui? Não
saio daqui. O chamávamos de negro da casa. É o que lhe chamamos agora,
porque ainda há muitos negros de casa.”
Malcolm X
Em
um dos seus discursos, cujo trecho reproduzi acima, Malcolm X, um dos
maiores ativistas negros pelos direitos civis posicionava-se frente a
muitos negros que agem a serviço dos brancos. Negros que não honram a
sua negritude e assim prestam um desserviço a comunidade negra, pois aos
olhos menos atentos parece que ele ascendeu, mas, na verdade, ele é uma
fração que age como serviçal e se coloca sempre ao lado do não negro
por algum benefício, seja salarial, seja “meritocrático”, ou por algum
tipo de honraria que recebe como forma de gratidão a “serviços
prestados”.
O nigeriano Wole
Sowinka, primeiro negro a receber o prêmio Nobel de Literatura
pronunciou a célebre frase: “O tigre não precisa proclamar a sua
tigritude. Ele salta sobre a presa e a mata”. Na verdade a postura de
alguns jornalistas como Heraldo Pereira demonstra como a frase de
Sowinka é tão atual.
Ora, é este o
mesmo jornalista que se apresenta como um funcionário ou um negro da
Casa Grande da Rede Globo e nunca fez um comentário sequer quando a
emissora se posiciona contra as cotas, contra as comunidades quilombolas
e sobre qualquer tipo de avanço da comunidade negra. Este mesmo
jornalista não fez ou faz um único comentário ou reflexão acerca do
livro “Não somos racistas” escrito pelo seu chefe, o diretor de
jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel. Este mesmo repórter se curva frente
ao ministro Gilmar Mendes, atitude diametralmente oposta à postura
digna, honrada e altiva do Excelentíssimo Ministro Joaquim Barbosa que o
enfrenta e diz a verdade acerca da postura de um ministro que
representa a elite branca, burguesa, aristocrática, ruralista, machista e
homofóbica deste país.
Eis que,
de repente, o repórter Heraldo Pereira, sempre silencioso frente às
maiores questões raciais deste país, sente a sua negritude desrespeitada
pelo Jornalista Paulo Henrique Amorim. Sem dúvida a postura é a mesma
que Malcolm X dizia em seu discurso. Um verdadeiro negro da Casa Grande.
O
histórico de Heraldo Pereira o coloca como um indivíduo subserviente a
serviço da elite. E toma para si a dor do seu chefe, tentando
desqualificar um jornalista com posição de vanguarda e anti-racista como
Paulo Henrique Amorim (para quem não conhece basta visitar o site:
www.conversaafiada.com.br) e assim colocá-lo na posição de racista. Logo
Paulo Henrique Amorim, um dos poucos jornalistas da grande mídia deste
país que enfrenta verdadeiramente os representantes da elite e que é
curiosamente processado por todos eles. Só para exemplificar Ali Kamel, o
famoso “não somos racistas”, foi testemunha de acusação neste
processo juntamente com o próprio Gilmar Mendes.
Daí
cabe um desagravo à figura de Paulo Henrique Amorim que, ao utilizar o
termo negro de alma branca, nada mais fez do que trazer à tona um debate
antigo, mas de forma antagônica à maneira tradicionalmente utilizada.
Outrora
o termo negro de alma branca era utilizado em casos de negros
“educados”, “civilizados” e que agiam como brancos, com toda a
civilidade do outro. A expressão era utilizada com a idéia de um sujeito
dotado de polidez, um ser letrado, que avançou, apesar das adversidades
a que os de sua raça estavam expostos.
O
que Paulo Henrique Amorim fez foi descortinar a expressão e colocá-la
como de fato deveria ser. O termo “negro de alma branca” deste modo
caracteriza-se como um negro a serviço de um determinado setor, uma
pessoa que não dignifica a sua ancestralidade e origem, ao se dispor a
fazer determinado papel, e quando não assume responsabilidade para
com os seus. É como imaginar um judeu nazista de pensamento ariano, para
mim algo impensável.
Evoco então
Milton Santos que pontuou: “É por isto que no Brasil quase não há
cidadãos. Há os que não querem ser cidadãos que são as classes médias, e
há os que não podem ser cidadãos que são todos os demais, a começar
pelos negros que não são cidadãos. Digo-o por ciência própria. Não
importa a festa que me façam aqui e ali, o cotidiano me indica que não
sou cidadão neste país… (sic) o meu caso é o de todos os negros deste
país, exceto quando apontado como exceção. E ser apontado como exceção
além se ser constrangedor para aquele que o é, constitui algo de
momentâneo, de impermanente, resultado de uma integração casual”.
Enfim,
o que envergonhava Milton Santos serve de júbilo para Heraldo Pereira.
Uma lástima para nós, verdadeiramente negros de alma negra.
Marcos Rezende
Membro
do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos e bacharel em
História, Marcos Rezende lecionou em escolas públicas e particulares
buscando aproximação dos alunos com a história da cidade, enfatizando a
questão da desigualdade social e racial.
Além
de ser principal voz de resistência contra o episódio da derrubada do
terreiro Oyá Onipó Neto, no Imbuí, presta auxílio a pequenas entidades e
afoxés que participam do Carnaval e atua com destaque no Coletivo de
Entidades Negras (CEN), organização não-governamental, sem fins
lucrativos e sem vínculos político-partidários, que tem o objetivo de
estabelecer o diálogo e diminuir a intolerância entre diferentes
segmentos raciais e sociais. Também é Conselheiro Nacional de Segurança
Pública do Ministério da Justiça, recebeu a Medalha Zumbi dos Palmares
da Câmara Municipal de Salvador por serviços prestados a comunidade
negra. É Religioso do Candomblé.
*comtextolivre
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