Kucinski: “Conviver com crimes hediondos é péssimo para o Brasil e para nossa moral”
“Talvez tenha sido. Talvez não.”
Assim o jornalista e escritor Bernardo Kucinski reagiu à informação de
que os corpos de sua irmã Ana Rosa Kucinski e seu cunhado Wilson Silva
tenham sido incinerados por agentes da ditadura. A notícia está entre as
confissões de crimes cometidos pelo aparato repressivo, feitas no livro "Memórias de uma Guerra Suja" pelo ex-delegado Cláudio Guerra, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Parte
do conteúdo do livro – resultado de depoimentos do ex-delegado aos
jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros colhidos nos últimos três
anos – foi divulgada hoje pelo editor Tales Faria, do portal iG. De
acordo com a reportagem, Cláudio Guerra admite sua participação em mais
de uma centena de sequestros e assassinatos praticados por milícias
comandadas pelos órgãos da repressão.
Entre eles,
Guerra revela a incineração dos corpos de pelo menos dez militantes de
organizações de resistência à ditadura: João Batista, Joaquim Pires
Cerveira, presos na Argentina pela equipe do delegado Sérgio Paranhos
Fleury; Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva, ela com marcas de violência
sexual e ele sem as unhas da mão direita; David Capistrano (“lhe haviam
arrancado a mão direita”), João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio
Maranhão Filho, dirigentes do Partido Comunista do Brasil; e Fernando
Augusto Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, militantes da Ação
Popular Marxista Leninista (APML).
Ana Rosa e
Wilson desapareceram em 22 de abril de 1974. De acordo com um depoimento
feito pelo ex-cabo do Exército José Rodrigues Gonçalves à jornalista
Mônica Bergamo, para uma reportagem da revista Veja em 1993, teriam sido
levados pelo delegado Fleury, passado um dia presos em São Paulo e
depois transferidos para Petrópolis, no Rio de Janeiro. "Lá, não devem
ter sobrevivido três dias até serem encaminhados à execução", conta
Bernardo, que obteve da própria jornalista uma cópia da reportagem, que
jamais chegou a ser publicada.
“As informações
surgidas hoje coincidem com uma série de outras já reveladas em outras
reportagens ou investigações”, diz Bernardo, que desde os anos 1970
procura por informações que levem aos restos mortais da irmã. “Já em
1982, o ex-sargento Marival Dias Chaves havia feito relatos sobre como
as pessoas eram presas e encaminhadas para Petrópolis. Só muda um pouco a
versão sobre o destino dos cadáveres, mas os pontos podem ser ligados.”
Morbidez trágica
Embora
as revelações de Cláudio Guerra tenham nexo, Bernardo Kucinski não acha
impossível que o ex-delegado fale em incineração dos corpos com
objetivo de “afrouxar” as buscas dos restos mortais dos desaparecidos
por seu familiares. O jornalista acredita que o acúmulo de informações
alcançadas por essas operações de buscas, combinadas com ações
desencadeadas pelo Ministério Público (de investigar crimes não
prescritíveis, como de sequestro, nem passíveis de perdão por força da
Lei de Anistia), podem contribuir mais para a elucidação das violações
praticadas pela repressão.
“Essa Comissão da
Verdade instalada pela presidenta Dilma já se auto-impôs limites que
podem comprometer a sua eficácia. E isso é grave, porque se a Comissão
não chegar a resultados efetivos, pode comprometer o curso das
investigações”, afirma Kucinski. “Por isso, acredito mais nas
possibilidades da Comissão da Verdade do Senado, nas ações do Ministério
Público e nas confissões de agentes envolvidos.”
Ele
considera angustiantes as imagens frequentemente relacionadas à
barbárie dos anos de chumbo. “As descrições dos crimes ou fotos como
aquela do Vlado Herzog (em que o jornalista aparece enforcado) expõem
uma morbidez da qual amigos, filhos e netos das vítimas deveriam ser
poupados”, revela.
O escritor, um dos
idealizadores e colaborador da Revista do Brasil, admite, porém, um
inconformismo com a passividade da sociedade. “Além desse livro que é
noticiado agora, já foram muitas as informações sobre os crimes
hediondos da ditadura. O bastante para degradar a imagem do Brasil. A
sociedade saber de tanta coisa e não fazer nada faz um grande mal à
nossa moral. Nada justifica tanta omissão.”
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