Política de uma nota só
Via CartaCapital
Vladimir Safatle
Há
várias maneiras de despolitizar uma sociedade. A principal delas é
impedir a circulação de informações e perspectivas distintas a respeito
do modelo de funcionamento da vida social. Há, no entanto, uma forma
mais insidiosa. Ela consiste em construir uma espécie de causa genérica
capaz de responder por todos os males da sociedade. Qualquer problema
que aparecer será sempre remetido à mesma causa, a ser repetida
infinitamente como um mantra.
Isto é o que
ocorre com o problema da corrupção no Brasil. Todos os males da vida
nacional, da educação ao modelo de intervenção estatal, da saúde à
escolha sobre a matriz energética, são creditados à corrupção. Dessa
forma, não há mais debate político possível, pois o combate à corrupção é
a senha para resolver tudo. Em consequência, a política brasileira
ficou pobre.
Não se trata aqui de negar que a
corrupção seja um problema grave na vida nacional. É, porém,
impressionante como dessa discussão nunca se segue nada, nem sequer uma
reflexão mais ampla sobre as disfuncionalidades estruturais do sistema
político brasileiro, sobre as relações promíscuas entre os grandes
conglomerados econômicos e o Estado ou sobre a inexistência da
participação popular nas decisões sobre a configuração do poder
Judiciário.
Por exemplo, se há algo
próprio do Brasil é este espetá-culo macabro onde os escândalos de
corrupção conseguem, sempre, envolver oposição e governo. O que nos
deixa como espectadores desse jogo ridículo no qual um lado tenta jogar o
escândalo nas costas do outro, isso quando certos setores da mídia
nacional tomam partido e divulgam apenas os males de um dos lados. O
chamado mensalão demonstra claramente tal lógica. O esquema de
financiamento de campanha que quase derrubou o governo havia sido
gestado pelo presidente do principal partido de oposição. Situação e
oposição se aproveitaram dos mesmos caminhos escusos, com os mesmos
operadores. Não consigo lembrar de nenhum país onde algo parecido tenha
ocorrido.
Uma verdadeira indignação
teria nos levado a uma profunda reforma política, com financiamento
público de campanha, mecanismos para o barateamento dos embates
eleitorais, criação de um cadastro de empresas corruptoras que nunca
poderão voltar a prestar serviços para o Estado, fim do sigilo fiscal de
todos os integrantes de primeiro e segundo escalão das administrações
públicas e proibição do governo contratar agências de publicidade
(principalmente para fazer campanhas de autopromoção). Nada disso sequer
entrou na pauta da opinião pública. Não é de se admirar que todo ano um
novo escândalo apareça.
Nas condições atuais, o
sistema político brasileiro só funciona sob corrupção. Um deputado não
se elege com menos de 5 milhões de reais, o que lhe deixa completamente
vulnerável -para lutar pelos interesses escusos de financiadores
potenciais de campanha. Isso também ajuda a explicar porque 39% dos
parlamentares da atual legislatura declaram-se milionários. Juntos eles
têm um patrimônio declarado de 1,454 bilhão de reais. Ou seja, acabamos
por ser governados por uma plutocracia, pois só mesmo uma plutocracia
poderia financiar campanhas.
Mas como sabemos
de antemão que nenhum escândalo de corrupção chegará a colocar em
questão as distorções do sistema político brasileiro, ficamos sem a
possibilidade de discutir política no sentido forte do termo. Não há
mais dis-cussões sobre aprofundamento da participação popular nos
processos decisórios, constituição de uma democracia direta, o papel do
Estado no desenvolvimento, sobre um modelo econômico realmente
competitivo, não entregue aos oligopólios, ou sobre como queremos
financiar um sistema de educação pública de qualidade e para todos. Em
um momento no qual o Brasil ganha importância no cenário internacional,
nossa contribuição para a reinvenção da política em uma era nebulosa no
continente europeu e nos Estados Unidos é próxima de zero.
Tem-se
a impressão de que a contribuição que poderíamos dar já foi dada
(programas amplos de transferência de renda e reconstituição do mercado
interno). Mesmo a luta contra a desigualdade nunca entrou realmente na
pauta e, nesse sentido, nada temos a dizer, já que o Brasil continua a
ser o paraíso das grandes fortunas e do consumo conspícuo. Sequer temos
imposto sobre herança. Mas os próximos meses da política brasileira
serão dominados pelo duodécimo escândalo no qual alguns políticos cairão
para a imperfeição da nossa democracia continuar funcionando
perfeitamente.
Quero um “sonegômetro” ao lado do “impostômetro”
do Sakamoto
Acho sen-sa-cio-nal haver um “impostômetro”
mostrando quanto os brasileiros pagaram de impostos federais,
estaduais, municipais e distritais desde o início do ano. Mantido pela
Associação Comercial de São Paulo na rua Boa Vista, Centro da capital
paulista, ele atingiu hoje a marca de R$ 500 bilhões, dois dias antes
que no ano passado.
Mas mais sen-sa-cio-nal
ainda seria a criação de um painel gigante, luminoso, hype, com um
“sonegômetro”, apontando quanto as empresas e contribuintes deveriam ter
pago mas, no cumprimento da Lei de Gérson, fizeram de conta que não era
com eles e vestiram a cara de paisagem. Ia ser uma briga boa, um painel
eletrônico ao lado do outro, pau a pau, feito os cavalinhos do Bozo.
(Um “sonegômetro” é mantido na internet pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial.)
Se
algumas empresas não sonegassem impostos ou, na melhor das hipóteses,
não empurrassem seus débitos com o INSS com a barriga, o “déficit”
previdenciário não seria do tamanho que é, por exemplo. Como já disse
aqui, é possível rebaixar a contribuição de trabalhadores e empregadores
ao INSS, compensando com a tributação do faturamento de empresas que
não são intensivas em mão-de-obra ou que não fazem recolhimento per
capita do INSS de seus empregados, como instituições do sistema
financeiro ou empresas que usam alta tecnologia. Quem contrata mais,
deveria recolher menos à Previdência do que os que contratam menos. Uma
redistribuição dos tributos também cai bem, zerando os que recaem sobre a
cesta básica, por exemplo. Ou seja, há o que ser feito. Mas isso não
justificar que empresas, ainda mais as lucrativas, passem a perna no
Estado (ou seja, em todo mundo) sob justificativas mil que desaguam na
pura cara-de-pau.
Com uma sonegação menor,
haveria mais recursos em caixa para contratar técnicos do Incra e
combater a grilagem de terras na Amazônia – mãe do desmatamento ilegal.
Ou mais médicos e enfermeiros em postos de saúde. Mais professores e
pedagogos em escolas do ensino básico ao superior. Defensores públicos
para ajudar quem não tem nada a usar o sistema de Justiça. Fiscais para
recolher impostos.
O Estado gasta mal nosso
dinheiro, isso não temos dúvida. Repartições inchadas e inúteis,
“aspones” jogando paciência no computador o dia inteiro, gente que pede
propina para dizer “bom dia”, enfim, todo mundo já deve ter formado uma
imagem na cabeça do que estou falando. Mas lembremos que atrás de
fiscais corruptos também há empresários corruptores que raramente são
expostos e condenados, até porque fazem parte da fina nata da sociedade.
Aos corrompidos, pão e água; aos corruptores, vinhos caros.
Só
interessa um Estado que não tem como cumprir suas funções a quem tem
dinheiro para suprir suas necessidades. Ou quem sai perdendo com um
Estado eficiente. Para que, então, financiar algo que vai me prejudicar
ou para o qual não dou a mínima?
*GilsonSampaio
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