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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, setembro 17, 2012

Monteiro Lobato e o racismo entre nós

CONFISSÕES DE MONTEIRO LOBATO (II)


Monteiro Lobato e o racismo entre nós

Por Paulo Moreira Leite

Eu já não era tão jovem quando se dizia que a melhor definição de bobo era do sujeito que não consegue mascar chiclete e andar ao mesmo tempo.

Acho que isso se aplica ao debate sobre Monteiro Lobato. É nosso maior autor infantil. Deixou uma obra densa e complexa, com várias contribuições ao entendimento do país. Mas Lobato era um autor racista e isso não pode ser escondido nem disfarçado. Precisa ser reconhecido e discutido pelos brasileiros, num sinal de respeito por nossa história e pelas vítimas de uma atitude que nossa Constituição define com crime inafiançável. Creio que devemos esse favor às futuras gerações, já que pouco podemos fazer pelas passadas, além de realizar um esforço para conhecer e estudar as dores do tempo em que viveram.


O racismo de Lobato aparece para crianças, quando ele fala do “beiço” de Tia Anastácia, de sua “carne preta” e chega a dizer que ela subia numa árvore como “macaca de carvão.” O racismo para adultos foi explicitado em sua correspondência privada. Em cartas, ele admitiu que tinha inveja dos norte-americanos que tinham sido capazes de formar uma organização como Ku Klux Klan, associação terrorista que sequestrava, torturava e enforcava negros no Sul, como uma vingança pela abolição da escravatura.

Este aspecto da obra de Lobato é horrível e inaceitável mas não é um traço pessoal do autor. É expressão do Brasil daquela época. Aprendi com Edward Said, um dos grandes autores de nosso tempo, indispensável para entendermos outro tipo de preconceito – contra povos árabes – que nenhum homem está 100% livre dos atrasos mentais de sua época. Estamos condenados a carregar, por herança familiar e social, as mazelas de nossa cultura e nosso meio. Podemos nos considerar felizes quando somos capazes de reconhecer e nos emancipar de parte deles, em vez de apenas reproduzir e fortalecer as forças daninhas que foram interiorizadas em nossa formação. Mas ninguém é 100% livre de seu passado.


Fingir que o racismo não existe e denunciar toda reação como patrulha politicamente correta é um ato simplista, de quem se esconde atrás da liberdade de expressão para manter a discriminação e o preconceito.


Quando Lobato escreveu muitos de seus livros infantis, a escravidão fora abolida há apenas 50 anos. Os antigos escravos eram marginalizados, discriminados e segregados.


Sem resposta aceitável para uma situação aberrante e vergonhosa, a cultura oficial brasileira daquela época olhava para estes brasileiros e tudo aquilo que representavam com uma visão de superioridade – racismo. Era uma forma de jogá-los para fora da história. Sofriam porque mereciam. A escravidão, no fundo, era justa. Civilizava o negro, dizia outro grande escritor, José de Alencar, adversário empedernido da abolição, mesmo em 1888. A ciência explicava as raças e, com elas, as diferenças entre os homens, dizia o racismo científico que inspirava outro grande autor, Euclides da Cunha.


Num momento posterior, tentou-se adotar uma outra visão sobre essa condição do negro. A de que vivíamos numa democracia racial, onde todos eram iguais e não havia preconceito em função da cor da pele. Hipocrisia organizada, a ideologia da democracia racial atingiu um ponto maior de sofisticação a partir de um silogismo maroto. Já que os homens de ciência não reconhecem raça como um valor científico, biológico, e os homens são animais que acreditam na ciência, o racismo simplesmente não pode existir.


Sabemos que tem gente que se julga muito inteligente e ganha a vida repetindo isso. Coisa de quem não sabe conviver com duas ideias diferentes. Racismo está na cultura, nos livros, no pensamento e, como vimos, em Monteiro Lobato. O porteiro da balada que cria dificuldade para deixar um negro entrar não tirou nota 10 em biologia, certo?


Se você for honesto pode encontrar racismo até na obra de Gilberto Freyre, que não queria ser racista e condenava o racismo quando era capaz de enxergá-lo – o que não acontecia sempre, como nós sabemos, a partir da regra de que ninguém zera sua herança cultural ou ideológica (...). Freyre chega a atribuir o temperamento, a inteligência e outros traços de um indivíduo ao fato de ser descendente de branco, negro ou indígena. Dizia, por exemplo, que o negro possuía uma “energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta tropical”, sugerindo que isso explicava que fosse usado no trabalho duro do engenho. Comparando populações brasileiras, Freyre dizia que o caráter “alegre, expansivo, sociável, loquaz” dos brasileiros nascidos da Bahia devia-se ao elemento “negróide” de sua constituição, em contraste com populações “tristonhas, aladas, sonsas e até sorumbáticas” de outros Estados, que seriam “menos influenciadas pelo sangue negro e mais pelo indígena.”


É esta herança que devemos debater, discutir e impedir que seja retransmitida às novas gerações.


Eu acho, por isso, que o racismo da obra de Lobato deve ser exposto e colocado, em sala de aula, nas conversas de pais e filhos e toda vez que uma criança passar por aquelas palavras horríveis, deprimentes – mas que, nós sabemos, fizeram parte da experiência de homens e mulheres de uma época.


Sou contra proibir uma obra de Lobato - e também seria contra proibir O Mercador de Veneza, com várias passagens contra judeus, sucesso absoluto junto a certo publico na Alemanha nazista - embora eu entenda a indignação de quem teve essa ideia.


Entendo porque é humilhante ser ofendido e ouvir, como resposta, que deve ser assim mesmo porque afinal de contas a Constituição garante a liberdade de expressão.


É verdade. Mas a Constituição garante, também, o respeito a dignidade de cada cidadão – e o racismo é uma forma brutal de ataque à dignidade.


Minha opinião é que cabe ao Estado, num país que teve a coragem de colocar o combate ao racismo na própria Constituição, ser coerente com seus princípios e tomar a iniciativa de combater o racismo aonde ele se encontra. Não vale esconder nem fingir que não existe.


É por isso que sou favorável à ideia de que as edições de Caçadas de Pedrinho, reconhecidas pelo MEC, sejam acompanhadas de uma nota explicativa capaz de situar Lobato e seu tempo. Este debate deve ser feito, irá formar crianças e jovens melhores. É um dever com todos brasileiros. (Fonte:
aqui).
 
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Sobre o assunto, publiquei neste blog, em abril do ano passado, o post "Confissões de Monteiro Lobato", aludindo a cartas escritas nos anos 40 pelo autor de Caçadas de Pedrinho e transcrevendo texto que Martinho da Vila produziu quando da visita de Barack Obama ao Brasil.
Lá, fiz o seguinte comentário: "Já haviam sido detectados trechos racistas na literatura de Lobato. Ano passado, houve questionamentos em face de 'As caçadas de Pedrinho', obra sobre a qual o MEC recomendou contextualização em sala de aula, por parte dos professores, tendo em conta o racismo nela exposto. (...)."
Para ler o post, clique aqui.

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