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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, maio 24, 2013

A COMISSÃO DA VERDADE, A SOFREGUIDÃO E OS HOLOFOTES


É suspeita a atitude de integrantes da Comissão Nacional da Verdade, de estarem desde já se posicionando publicamente a favor ou contra a revogação da anistia de 1979.

Isto porque nada será decidido agora. O xis da questão é se, no relatório final da Comissão, daqui a um ano e meio, vai ou não ser recomendada a anulação da aberração jurídica que permitiu aos assassinos oficiais anistiarem a si próprios.

Então, por que botaram o carro na frente dos bois, lançando o debate com tanta antecedência? Meu palpite é de que se trata de um terceiro tema controverso oferecido numa bandeja à imprensa, para que a Comissão da Verdade entre com destaque no noticiário.

É verdade: a presidente Dilma Rousseff cobrou, há alguns meses, que dessem maior visibilidade aos trabalhos da Comissão. Mas, será que ela tinha em mente a espetacularização? Ou os conselheiros estão sendo mais realistas do que a rainha?

O certo é que coincidiram com o primeiro aniversário do colegiado:
  1. o anúncio da decisão de exumarem o corpo do ex-presidente João Goulart, que pode levar à comprovação de seu assassinato por envenenamento (ou, em caso contrário, fornecer um poderoso trunfo propagandístico às  viúvas da ditadura, daí haver sido uma leviandade trombetearem o que poderiam ter feito discretamente, deixando o obaoba para depois, se o resultado dos exames o justificasse);
  2. a totalmente inútil convocação do megatorturador Carlos Alberto Brilhante Ustra para bater boca com membros da Comissão, cuja sessão foi aberta ao público pela primeira vez exatamente para maximizar a repercussão do espetáculo... deprimente e constrangedor; e,
  3. agora, a também totalmente inútil antecipação de uma polêmica que só será travada para valer, se o for, no final de 2014.
Tal busca sôfrega por holofotes me fez lembrar um episódio emblemático. Em 2004, quando do 25º aniversário do simulacro de anistia que igualou as vítimas a seus carrascos, era previsível que a imprensa estivesse à cata de notícias para preencher os espaços dedicados à efeméride.

A Comissão de Anistia programou exatamente para aquele momento o julgamento do processo de Anita Leocádia Prestes (ela estava em grande evidência por causa do recém-lançado filme Olga) e divulgou triunfalmente que lhe concedera uma indenização.

Anita, contudo, retrucou dignamente que não pedira tal indenização e a doaria para caridade. Seu pleito era apenas de que o tempo passado no exílio fosse também considerado, na contagem dos anos para ela obter aposentadoria de professora; só queria aquilo que pedira, não o que fora acrescentado à sua revelia.

A CAPITULAÇÃO DECISIVA SE DEU EM 2008

Quanto ao fulcro da questão, reitero o que venho escrevendo desde meados de 2008, quando o Ministério se dividiu (Tarso Genro e Paulo Vannuchi encabeçavam a corrente a favor da revogação da Lei de Anistia e Nelson Jobim, a contrária) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se colocou ao lado do então ministro da Defesa, desperdiçando uma oportunidade única para expor o blefe de velhos militares que não falavam em nome das tropas:
  • a apuração dos crimes e atrocidades da ditadura, com a consequente punição dos responsáveis, era um dever que o Estado brasileiro deveria ter cumprido logo no início da redemocratização, em 1985 (mas, claro, não se poderia esperar que o arenoso José Sarney colocasse o próprio pescoço na forca, depois de ter sido o mais servil capacho dos militares);
  • por culpa de um sem-número de omissos, continuamos na estaca zero até hoje, no que diz respeito à punição das bestas-feras;
  • mesmo que se derrube a vergonhosa decisão de 2010 do Supremo Tribunal Federal, na contramão das recomendações da ONU e do enfoque legal dos países civilizados, já não há mais hipótese de a condenação dos criminosos hediondos transitar em julgado antes que eles morram todos de velhice, dada a lerdeza da Justiça brasileira e o número infinito de manobras protelatórias que faculta a quem pode contratar os melhores advogados;
  • então, devemos nos preocupar é com o legado que deixaremos aos pósteros, ou seja, batalharmos para que não permaneça legitimado o escabroso precedente de uma ditadura, em plena vigência, anistiar antecipadamente seus esbirros, concedendo-lhes uma espécie de habeas corpus preventivo.
Reposicionar tal questão dependeria, evidentemente, de uma articulação política.

Um equívoco da espetacularização 
Para eles, é inaceitável o cumprimento de penas, a perda de pensões e o pagamento de indenizações.

Do nosso lado, uma vez que admitamos realisticamente o fato de que a possibilidade de vê-los um dia encarcerados se tornou quimérica,  o mais inaceitável passará a ser seu  enquadramento formal pelo Estado brasileiro como  anistiados  e não  como    criminosos.

Temos de, pelo menos, desestimular recaídas no arbítrio;  a completa impunidade sacramentada pelo STF vai exatamente na direção contrária, deixando, inclusive, os cidadãos desinformados em dúvida sobre sua culpa. Então, mesmo não havendo punições concretas, é preciso que fique bem evidenciada para o povo brasileiro a responsabilidade dos golpistas e seus paus mandados no verdadeiro festival de horrores que aqui teve lugar.

A infame decisão da STF não pode ser a palavra final nesta questão, a menos que nos assumamos como uma república das bananas, ignorante dos valores que norteiam a vida civilizada e disposta às mais abjetas concessões para afastar o espectro das quarteladas.
Para avançarmos, entretanto, se faz necessária uma negociação; e a resistência da caserna, que (embora superestimada) tem existido nos últimos anos, poderá ser esvaziada se descartarmos a hipótese de punições. Aí, sem dramas, os oficiais mais jovens não vão sentir-se moralmente obrigados a prestar solidariedade aos velhos carrascos.

Enfim, é um desafio para o governo de Dilma Rousseff, para as forças progressistas e para os cidadãos com espírito de justiça e apreço pela democracia, darem um desfecho mais digno para a tragédia dos anos de chumbo, sem a repulsiva ambiguidade da anistia de 1979.

A hora de punir pode ter passado, mas o Estado brasileiro deve afirmar inequivocamente que tais pessoas eram culpadas e mereciam punição. Só assim se criará uma expectativa de tratamento mais severo para quem  tentar reimplantar o totalitarismo.

*Naufragodautopia

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