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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, maio 27, 2013

Em defesa da dita

O editorial da Folha de São Paulo de sábado (25/5), “Em defesa da Anistia”, engendra um discurso de teor autoritário que só poderia estar a serviço da impunidade dos criminosos do regime militar.
Logo no segundo parágrafo aparece “persecutório”, adjetivo discutível no contexto das atribuições da Comissão Nacional da Verdade e cheio de implicações revanchistas. Pior é encontrar, logo em seguida, “seus membros são livres para fazer constar no texto as recomendações que julgarem mais convenientes”. Por que a reiteração da obviedade? Quem pediu o aval da Folha?
“A proposta de mudar a Lei de Anistia”, segue o texto, “fomenta a discórdia no próprio grupo”. A iniciativa é associada à intriga, em oposição a um suposto espírito conciliador da maioria. Exatamente a tese dos ditadores civis e militares que redigiram a Lei. Então ressurge explicitamente o usual “revanchismo”, para justificar a falta de colaboração dos militares nas audiências. Coitados, eles estão apenas se protegendo.
Citar o endosso do Supremo Tribunal Federal é uma tentativa de conferir estatuto inquestionável a uma decisão de legitimidade no mínimo duvidosa. E também joga um apelo demagógico aos leitores que corroboram a atuação recente da corte. A frase seguinte inclui um trecho da medida de 1979, sem aspas, naturalizando a inaceitável expressão “motivações políticas” usada para unificar os crimes de agentes do Estado e de seus adversários, como se tivessem os mesmos recursos, meios e objetivos.
A idéia dos “ímpetos” e “conflitos e divisões” refreados insiste no caráter intransigente e irracional dos que defendem a punição dos bandidos. E que lutariam contra “o reencontro da sociedade consigo mesma” e “a reconstrução da democracia”. O estranho teor psicanalítico da primeira figura talvez se refira ao apoio majoritário recebido pelo golpe militar, inclusive da própria Folha. Mas o complemento lhe traz uma conotação apaziguadora, pois, “reencontrando-se”, os defensores do autoritarismo descobrem o âmago republicano desde sempre incutido nas suas boas intenções. Não foi assim que os ditadores explicaram a derrubada do fantasma comunista?
Reproduzo o nono capítulo: “Goste-se ou não, a passagem do regime de exceção para o Estado de Direito foi fruto de lutas, mas também de entendimentos. Antes de uma imposição, a anistia ampla foi um pacto que assegurou a transição democrática.” A expressão inicial é bem característica do vocabulário da autoridade. Mas o veredito da Folha independe mesmo de “gostarmos” dele? O próprio texto contradiz a negativa da “imposição”, outorgando um “pacto” que não permite discordância.
O indulto a assassinos, estupradores e torturadores “tem contribuído para que o país não se dilacere em lutas internas”, finaliza o editorial. As últimas palavras são fortes, algo ameaçadoras, típicas do alarmismo golpista. E completam-se muito coerentemente sugerindo que a comissão “deveria se concentrar em sua tarefa em vez de abraçar propostas inoportunas que extrapolam o seu próprio escopo”. A Folha ordena que os inconvenientes se coloquem nos seus lugares. Senão...
De fato, a defesa do indefensável exige uma retórica apropriada.
*Guilherme Scalzilli

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