A teoria do Estado e o partido revolucionário em Marx e Engels
"A luta para
libertar as massas trabalhadoras da influência da burguesia em geral, e
da burguesia imperialista em particular, é impossível sem uma luta
contra os preconceitos oportunistas em relação ao Estado"1.
Por Rita Coitinho*, especial para o Vermelho
Conceitos como "ditadura do proletariado", "partido revolucionário", "poder de classe", dentre outros, causam arrepios aos liberais - de esquerda e de direita. Fundamentalmente porque a propaganda ideológica da burguesia, até o momento vitoriosa nos espaços de produção e difusão do pensamento, tem conseguido deturpar seu sentido real, ao mesmo tempo em que outros conceitos são propagados como valores universais: democracia, como oposição à "ditadura". O que não se admite, em geral, é a pergunta: democracia ou ditadura de quem? E para quem? O que é, de fato, democracia? É votar, simplesmente, ainda que as massas a quem se concede o sufrágio não tenham garantido o acesso às condições de subsistência e que o poder econômico seja o real fiel da balança eleitoral?
A propaganda ideológica divulga a ditadura do poder econômico da burguesia como "democracia" e acusa as experiências socialistas de serem "ditaduras". Da mesma maneira, parte da esquerda adere a essa pretensa universalidade dos conceitos de democracia e representação, transformando a luta pelo poder político em simples disputa pela gestão do aparelho de Estado, entendido como uma entidade exterior e acima das classes. É aí que está o problema central da atuação dos partidos que se orientam pelo marxismo-leninismo. A noção de partido revolucionário que encontramos na teoria marxista-leninista fundamenta-se, quase que totalmente, nas concepções expressas por Marx e Engels sobre a natureza do Estado, como aparelho da classe dominante, noções resgatadas por Lênin em suas obras sobre a questão do Estado e sobre o partido revolucionário. Este artigo procura apresentar, resumidamente, algumas das formulações dos fundadores do marxismo de forma a apontar os laços indissociáveis entre teoria do Estado, Partido e a noção de "ditadura do proletariado".
Para os fundadores do moderno socialismo científico, a história social dos homens e mulheres nunca é mais do que a história do seu desenvolvimento individual, tenham consciência disso ou não. As relações materiais formam a base de todas as suas relações e não são mais do que as formas necessárias nas quais se realiza sua vontade material e individual. Todas as formas econômicas são históricas e, portanto, transitórias. Se, por um lado, é verdade que a humanidade não renuncia às melhorias que conquista historicamente, não significa, por outro lado, que jamais renuncie à forma social em que foram desenvolvidas as forças produtivas que possibilitaram essa elevação das condições de vida. Pelo contrário: no momento em que o modo de organização societária não corresponde às forças produtivas adquiridas, homens e mulheres são obrigados a modificar suas formas tradicionais. As mudanças no plano das ideias acompanham as de ordem material.
Engels, em carta a Joseph Bloch (1890), apontava que “a situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, as constituições estabelecidas uma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa; as formas jurídicas e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as concepções religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos – exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de maneira preponderante sua forma. Há ação e reação em todos esses fatores, no seio dos quais o movimento econômico acaba por se impor como uma necessidade por meio da infinita multidão de acidentes”2.
Posteriormente Gramsci desenvolveu esta concepção da "superestrutura", fazendo uma distinção analítica entre a sociedade civil e a política, na qual a primeira é composta de associações voluntárias (como famílias, escolas, sindicatos etc.) e a última é constituída de instituições estatais (exército, burocracia, polícia), cujo papel na vida política é a dominação direta: violência, submissão. A cultura, em operação dentro da sociedade civil, influencia as ideias, instituições e indivíduos pelo consenso - essa forma de liderança cultural é o que Gramsci identificou como hegemonia.
As transformações sociais explicam-se dialeticamente: por um lado, o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo gera contradições entre as classes detentoras dos meios de produção (burguesia) e a classe trabalhadora - “na medida em que o trabalho se desenvolve socialmente, convertendo-se assim em fonte de riqueza e cultura, desenvolve-se também a pobreza e o desamparo dos operários, e a riqueza dos que não trabalham” -; por outro lado, essa luta que se estabelece entre as classes cria os fundamentos da teoria que orienta a luta política. Os embates entre as classes acontecem no plano político e, assim, ordenam-se os partidos, que são “a expressão política mais ou menos adequada das referidas classes e frações de classe”3.
Importante destacar que nem toda luta travada pelos partidos se deve, necessariamente, a interesses econômicos irreconciliavelmente conflitantes. São também parte da luta política as disputas entre partidos de frações de uma mesma classe, onde uma delas acaba por conquistar a hegemonia sobrepondo-se às outras, como foi o caso descrito na obra de Marx O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Neste estudo, Marx descreveu a luta travada entre burgueses monarquistas e burgueses republicanos, uma divisão da burguesia entre a propriedade agrária e o capital (financeiro e produtivo). As demais classes e frações de classe envolveram-se no conflito, como aliados de um dos dois campos da burguesia ou mesmo isoladamente.
Considerando a forma anárquica de desenvolvimento do capitalismo, Marx e Engels preocupavam-se com a constituição de um forte movimento do proletariado orientado para a destruição da sociedade capitalista e a construção do socialismo, como transição para uma sociedade sem classes, o comunismo moderno. Todo o seu esforço de compreensão dos mecanismos de funcionamento do modo de produção capitalista estava voltado a construir uma teoria que orientasse a ação da classe proletária na luta política pela tomada do poder – “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo"4.
Ainda que Marx e Engels não tenham produzido nenhuma obra sistemática sobre a questão do partido político, esse debate ocupa uma posição central no conjunto de seu pensamento e na sua atividade política. Para eles, a classe revolucionária, na sociedade capitalista, é o proletariado. Assim como foi a burguesia a classe revolucionária durante o processo de ruptura com o feudalismo (o que não significa que outras classes não possam aliar-se ao proletariado nas lutas políticas). Para atuar “como classe”, o proletariado precisava, na visão dos dois pensadores, constituir-se como partido político distinto, opondo-se a todos os demais partidos existentes. “Essa constituição do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e de seu objetivo supremo: a abolição das classes”5.
Dentro desta lógica de construção partidária, os comunistas constituiriam “a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona os demais; teoricamente, têm sobre a grande massa do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário”6.
O Estado, para Marx e Engels, fundamenta-se na sociedade existente e é instrumento de dominação de classe. Na sociedade capitalista o Estado é controlado pela burguesia e serve aos seus interesses. Assim, a ação da classe operária, organizada em seu partido político (e nas organizações econômicas, os sindicatos), não deve ser orientada para o controle deste Estado, mas para a construção das condições históricas para sua destruição: "A comuna de Paris demonstrou, sobretudo, que a classe operária não pode limitar-se simplesmente a tomar posse da máquina do Estado tal como está e servir-se dela para seus próprios fins" 7. Nesse sentido, as conquistas democráticas arrancadas à burguesia são importantes, mas não podem ser o horizonte da classe trabalhadora, pois a estrutura de Estado construída pela burguesia funciona para a manutenção do seu poder de classe, que pressupõe, justamente, o controle e a submissão das demais classes sociais. A verdadeira autonomia dos trabalhadores está em uma formação social sem opressão de classe - a sociedade comunista. E entre a sociedade comunista, objetivo último dos trabalhadores, e a sociedade capitalista, situa-se um período de transformação revolucionária, um período de transição política, “em que o Estado não poderá ser outra coisa que não a ditadura revolucionária do proletariado”8.
O conceito de "ditadura do proletariado" costuma ser deturpado pela teoria burguesa e pelos detratores do marxismo. Foi o que fizeram Kautsky e mencheviques como Martóv. Lênin, em O Estado e a Revolução e depois em A revolução proletária e o renegado Kautsky demonstrou como esses teóricos procuraram atribuir ao conceito de "democracia" e ao parlamentarismo burguês (o cretinismo parlamentar, nas palavras de Lênin) valores pretensamente universais, procurando esconder (por meio de citações incompletas e interpretações que deturpavam o sentido original dos textos de Marx e Engels) a formulação segundo a qual a natureza do Estado - seja ele qual for - é a garantia do poder da classe dominante por meio da repressão às demais classes existentes na sociedade, onde o conceito de Ditadura do Proletariado remete, unicamente, à ideia de que o Estado, sob controle da classe revolucionária, deverá exercer seu poder politico sobre a classe derrotada, até que esta seja definitivamente expropriada e eliminada enquanto classe.
Nesta luta pelo controle dos rumos da organização societária, Marx e Engels não veem possibilidade de que as disputas se deem de forma permanentemente pacífica. A burguesia não abrirá mão de seu poder de classe a favor do proletariado, e a liberdade desta última classe só se realiza na medida em que não existam mais exploradores e explorados, o que significa a supressão de todas as classes. Do mesmo modo como a libertação da burguesia - que estava relegada ao Terceiro Estado no feudalismo - foi a abolição de todos os estados e de todas as estruturas de poder feudal, a libertação do proletariado deverá substituir a antiga sociedade civil por uma nova associação, que substituirá as classes e seus antagonismos intrínsecos, e “já não haverá então poder político propriamente dito, pois que o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo da sociedade civil”9. Para lembrar novamente a contribuição de Gramsci, a classe revolucionária terá sucesso em sua empreitada quando conquistar a hegemonia, ou seja, quando seus valores culturais se tornarem os valores dominantes em toda a sociedade.
A disputa entre proletariado e burguesia é uma disputa de classe contra classe, luta que em sua mais elevada expressão é a completa revolução das estruturas sociais. Somente numa sociedade sem classes é que a evolução social poderá ser dar de forma a que não existam revoluções políticas. Marx expressa o resumo deste ponto de vista no final do texto A miséria da filosofia: “Até lá, nas vésperas de cada remodelação geral da sociedade, a última palavra da ciência social será sempre ‘o combate ou a morte: a luta sanguinária ou o nada. É assim que inelutavelmente se apresenta a questão’ (Geoge Sand)”10.
Notas:
1- LENIN, V.I. Estado e a Revolução. In: Obras Escolhidas, Alfa-Ômega, São Paulo: 1980. Tomo II. Página 223.
2- ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Cartas Filosóficas & O Manifesto Comunista. Editora Moraes, São Paulo: 1987.Página 39.
3 - ENGELS, Friedrich. Introdução de 1895 à As Lutas de Classe na França. In: MARX & ENGELS: Textos. Volume III. Edições Sociais, São Paulo: 1977. Página 94.
4 - ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. A Ideologia Alemã (Feuerbach). Hucitec, São Paulo: 1987. Página 14.
5 - MARX, Karl. Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores. In: MARX & ENGELS: Textos. Volume III. Edições Sociais, São Paulo: 1977. Página 324.
6- ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Cartas Filosóficas & O Manifesto Comunista. Editora Moraes, São Paulo: 1987.Página 117.
7- ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Prefácio de 1872 ao Manisfesto Comunista. O trecho foi uma correção dos autores ao texto original do Manifesto é uma citação da obra do próprio Marx, "A guerra civil na França". Também foi citado por Lênin na obra O Estado e a Revolução.
8 - MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. http://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm.
9 - MARX, Karl. Miséria da Filosofia. Centauro, São Paulo: 2001. Página 152.
10 - MARX, Karl. Miséria da Filosofia. Centauro, São Paulo: 2001.
Bibliografia:
ENGELS, Friedrich. Introdução de 1895 à As Lutas de Classe na França. In: MARX & ENGELS: Textos. Volume III. Edições Sociais, São Paulo: 1977.
ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Cartas Filosóficas & O Manifesto Comunista. Editora Moraes, São Paulo: 1987.
ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. A Ideologia Alemã (Feuerbach). Hucitec, São Paulo: 1987.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MARX, Karl. Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores. In: MARX & ENGELS: Textos. Volume III. Edições Sociais, São Paulo: 1977.
MARX, Karl. Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores. In: MARX & ENGELS: Textos. Volume III. Edições Sociais, São Paulo: 1977.
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte e Cartas a Kugelmann. Paz e Terra, 4a edição, Rio de Janeiro: 1978.
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. http://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm.
MARX, Karl. Miséria da Filosofia. Centauro, São Paulo: 2001.
LENIN, V.I. O Estado e a Revolução. In: Obras Escolhidas, Alfa-Ômega, São Paulo: 1980. Tomo II.
* Rita Matos Coitinho é mestra em sociologia, cientista social e militante do PCdoB em Santa Catarina
http://www.vermelho.org.br/autores-e-ideias/noticia.php?id_noticia=218585&id_secao=297
*CarlosMaia
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