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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, julho 16, 2013

Desmilitarizar e unificar a polícia


A recente ação truculenta da polícia foi um dos impulsos para as recentes manifestações em São Paulo e no Brasil
Uma das heranças mais malditas que a ditadura militar nos deixou é a dificuldade que os brasileiros têm de distinguir entre as funções das nossas Forças de Segurança (polícias) e as das nossas Forças Armadas (exército, marinha, aeronáutica). A diferença é muito simples: as Forças de Segurança garantem a segurança interna do Estado, enquanto as Forças Armadas garantem a segurança externa. Polícias reprimem criminosos e forças armadas combatem exércitos estrangeiros nos casos de guerra.
Diante das desmensuradas diferenças de funções existentes entre as Forças de Segurança e as Forças Armadas, é natural que seus membros recebam treinamento completamente diferente. Os integrantes das Forças Armadas são treinados para enfrentar um inimigo externo em casos de guerra. Nessas circunstâncias, tudo que se espera dos militares é que matem os inimigos e protejam o território nacional. Na guerra, os prisioneiros são uma exceção e a morte é a regra.
Carandiru - o rio de sangue é um exemplo mais forte da ação mortal da polícia militarAs polícias, por outro lado, só deveriam matar nos casos extremos de legítima defesa própria ou de terceiro. Seu treinamento não é para combater um inimigo, mas para neutralizar ações criminosas praticadas por cidadãos brasileiros (ou por estrangeiros que estejam por aqui), que deverão ser julgados por um poder próprio da República: o Judiciário. Em suma: enquanto os exércitos são treinados para matar o inimigo, polícias são treinadas para prender cidadãos. Diferença nada sutil, mas que precisa sempre ser lembrada, pois muitas vezes é esquecida ou simplesmente ignorada, como na intervenção no Complexo do Alemão na cidade do Rio de Janeiro ou em tantas outras operações na qual o exército tem sido convocado para combater civis brasileiros.
O militarismo se justifica pelas circunstâncias extremas de uma guerra, quando a disciplina e a hierarquia militares são essenciais para manter a coesão da tropa. O foco do treinamento militar é centrado na obediência e na submissão, pois só com estas se convence um ser humano a enfrentar um exército inimigo, mesmo em circunstâncias adversas, sem abandonar o campo de batalha. Os recrutas são submetidos a constrangimentos e humilhações que acabam por destituí-los de seus próprios direitos fundamentais. E se o treinamento militar é capaz de convencer um soldado a se deixar tratar como um objeto na mão de seu comandante, é natural também que esse soldado trate seus inimigos como objetos cujas vidas podem ser sacrificadas impunemente em nome da sua bandeira.
A sociedade reclama do tratamento brutal da polícia, mas insiste em dar treinamento militar aos policiais, reforçando neles, a todo momento, os valores de disciplina e hierarquia, quando deveria ensiná-los a importância do respeito ao Direito e à cidadania. Se um policial militar foi condicionado a respeitar seus superiores sem contestá-los, como exigir dele que não prenda por “desacato à autoridade” um civil que “ousou” exigir seus direitos durante uma abordagem policial? Se queremos uma polícia que trate suspeitos e criminosos como cidadãos, é preciso que o policial também seja treinado e tratado como civil (que, ao pé da letra, significa justamente ser cidadão).
O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de São Paulo”.Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios.
Após ação do BOPE, população comemora a retoma da Rocinha, no RJ, pelo poder público
Nossa Polícia Militar é uma distorção dos principais modelos de polícia do mundo. Muitos países europeus possuem gendarmarias, que são forças militares com funções de polícia no âmbito da população civil, como a Gendarmerie Nationale na França, os Carabinieri na Itália, a Guardia Civil na Espanha e a Guarda Nacional Republicana em Portugal. As gendarmarias, porém, são bem diferentes da nossa Polícia Militar, a começar pelo fato de serem nacionais, e não estaduais. Em geral, as atribuições de policiamento das gendarmarias europeias se restringem a áreas rurais, cabendo às polícias civis o policiamento, tanto ostensivo como investigativo, das áreas urbanas, o que restringe bastante o âmbito de atuação dos militares. As gendarmarias europeias também são polícias de ciclo completo, isto é, realizam não só o policiamento ostensivo, mas também são responsáveis pela investigação policial.
No Brasil, a Constituição da República estabeleceu no seu artigo 144 uma excêntrica divisão de tarefas, na qual cabe à Polícia Militar realizar o policiamento ostensivo, enquanto resta à Polícia Civil a investigação policial. Esta existência de duas polícias, por óbvio, não só aumenta em muito os custos para os cofres públicos que precisam manter uma dupla infraestrutura policial, mas também cria uma rivalidade desnecessária entre os colegas policiais que seguem duas carreiras completamente distintas. O jovem que deseja se tornar policial hoje precisa optar de antemão entre seguir a carreira de policial ostensivo (militar) ou investigativo (civil), criando um abismo entre cargos que seriam visivelmente de uma mesma carreira.
Nos EUA, na Inglaterra e em outros países que adotam o sistema anglo-saxão, as polícias são compostas exclusivamente por civis e são de ciclo completo, isto é, o policial ingressa na carreira para realizar funções de policiamento ostensivo e, com o passar do tempo, pode optar pela progressão para os setores de investigação na mesma polícia. Para que se tenha uma ideia de como esse sistema funciona, um policial no Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) ingressa na carreira como agente policial (police officer) para exercer atividades de polícia ostensiva (uniformizado), tais como responder chamadas, patrulhar, perseguir criminosos etc. Depois de alguns anos, esse agente policial pode postular sua progressão na carreira para o cargo de detetive (detective) no qual passará a exercer funções investigativas e não mais usará uniformes. A carreira segue com os cargos de sargento (sergeant), que chefia outros policiais; de tenente (lieutenant), que coordena os sargentos; e de capitão (captain), que comanda o que chamaríamos de delegacia.
Apesar do que a semelhança dos nomes poderia sugerir, não se trata de patentes, mas de cargos, pois todos são funcionários públicos civis. Cada policial está subordinado apenas a seus superiores hierárquicos em linha direta, assim como um escrivão judicial brasileiro está subordinado ao juiz com o qual trabalha. Um agente policial estadunidense não está subordinado de qualquer forma às ordens de um capitão de uma unidade policial que não é a sua, assim como o escrivão judicial brasileiro não deve qualquer obediência a juízes de outras varas. Para se ter uma ideia da importância dessa diferença, basta imaginar a situação difícil em que fica um policial militar brasileiro ao parar, em uma blitz, um capitão a quem, para início de conversa, tem o dever de prestar continência. A hierarquia militar acaba funcionando, em casos como esse, como uma blindagem para os oficiais, em um nítido prejuízo para o princípio republicano da igualdade de tratamento nos serviços públicos.
As vantagens de uma polícia exclusivamente civil são muitas e, se somadas, a unificação das polícias ostensiva e investigativa em uma única corporação de ciclo completo só traz benefícios para os policiais, em termos de uma carreira mais atrativa, e aos cidadãos, com um policiamento único e mais funcional.
No Brasil, tramita no Senado da República a Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011, de autoria do senador Blairo Maggi (PR/MT), que, se aprovada, permitirá aos estados unificarem suas polícias em uma única corporação civil de âmbito estadual, representando um avanço imensurável na política de segurança pública brasileira, além de uma melhor aplicação do dinheiro público, que não mais terá que sustentar duas infraestruturas policiais distintas e, algumas vezes, até mesmo concorrentes.
A unificação das polícias também possibilitaria uma carreira policial bem mais racional do que a que temos hoje. O policiamento ostensivo é bastante desgastante e é comum que, à medida que o policial militar envelhece, ele acabe sendo designado para atividades que exijam menor vigor físico. Como atualmente existem duas polícias e, portanto, duas carreiras policiais distintas, os policiais militares acabam sendo designados para tarefas internas, típicas de auxiliar administrativo, mas permanecem recebendo a mesma remuneração de seus colegas que arriscam suas vidas nas ruas. Com a unificação, ocorreria o que acontece na maioria das polícias do mundo: ele seria promovido para o cargo de detetive e sua experiência como policial ostensivo seria muito bem aproveitada na fase de investigação. Para suprir os cargos administrativos meramente burocráticos, bastaria fazer concursos para auxiliares administrativos que requerem vocação, habilidades e treinamento bem mais simples daqueles exigidos de um policial.
 Comando de Operações Táticas (COT)
Desconhecidos da maioria dos brasileiros, o  Comando de Operações Táticas (COT) é a tropa de elite da Polícia Federal do Brasil. De natureza civil, silenciosa, discreta e, antes de entrar em ação, praticamente invisível a criminosos, em seus 23 anos de atuação não sofreu nenhuma baixa, nunca matou um bandido sem confronto a tiros e raramente perde reféns. 
Por outro lado, os policiais civis que realizam o trabalho de investigação atualmente são recrutados por meio de concursos públicos e começam a exercer suas atividades investigativas sem nunca terem tido experiência policial nas ruas. Com a unificação da polícia, o ingresso se daria sempre para o cargo de policiamento ostensivo, no qual o policial ganharia experiência e só então poderia ascender na carreira para os cargos de investigação. Um modelo que privilegia a experiência prática, e não o conhecimento técnico normalmente exigido em provas de concursos.
Finalmente, a unificação das polícias acabaria também com os julgamentos de policiais pela Justiça Militar. Pelo atual sistema, os crimes praticados por policiais militares em serviço (exceto crimes dolosos contra a vida de civis) são julgados não pelo juiz criminal comum, mas pela Justiça Militar, em uma clara violação do princípio republicano da isonomia. É como se as universidades federais tivessem uma Justiça Universitária para julgar os crimes praticados por professores durante as aulas; ou as indústrias tivessem uma Justiça Industrial para julgar os crimes praticados por metalúrgicos em serviço. Uma espécie de universo paralelo jurídico que só se explica pela força política dos militares quando da promulgação da Constituição de 1988.
Desmilitarizar e unificar as polícias estaduais brasileiras é uma necessidade urgente para que haja avanços reais na nossa política de segurança pública. Vê-se muito destaque na mídia para projetos legislativos que demagogicamente propõem o aumento de penas e outras alterações nos nossos códigos Penal e de Processo Penal como panaceia para o problema da criminalidade. Muito pouco se vê, porém, quanto a propostas que visem a repensar a polícia brasileira.
De nada adianta mudar a lei penal e processual penal se não se alterar a cultura militarista dos seus principais aplicadores. Treinem a polícia como militares e eles tratarão todo e qualquer suspeito como um militar inimigo. Treinem a polícia como cidadãos e eles reconhecerão o suspeito não como “o outro”, mas como alguém com os seus mesmos direitos e deveres. Nossa polícia só será verdadeiramente cidadã quando reconhecer e tratar seus próprios policiais como civis dotados dos mesmos direitos e deveres do povo para o qual trabalha.
Túlio Vianna

A PM em xeque

Foto: Marcelo Camargo / ABr
O homem tem 34 anos, aproximadamente um metro e oitenta e cinco de altura, braços largos e musculosos e algumas cicatrizes na face. “São marcas das batalhas”, diz. De tez morena, feição séria, voz rouca, cabeça raspada e barba feita, tem um ar de guerrilheiro combatente. Filho de um pedreiro e de uma costureira é o sétimo irmão dentre oito. O bater dos pés no chão constantemente demonstra impaciência e certo nervosismo. Suas primeiras palavras explicam muito de sua profissão: “Não, não existe essa de ir para rua para enxergar cidadão em manifestação, e pior ainda em favela, é tudo vagabundo, ou como gosta de falar uns coronéis, uns chefes mais antigos, é subversivo, então temos que ir para cima”.
A descrição do homem acima e o sequente relato pertencem a *Robson, um soldado da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que aceitou conversar com a reportagem do Brasil de Fato, sob a condição de sigilo de sua identidade. O PM está há dez anos na instituição e atua numa das periferias da cidade, no extremo sul.
A clareza com que Robson explicita a violência, característica central das ações da PM brasileira, ilustra as cenas de truculência desmedida da corporação contra os manifestantes dos diversos protestos que eclodiram pelo país no mês de junho, episódios que trouxeram o tema da desmilitarização da Polícia Militar à tona nas últimas semanas.
A violência reservada geralmente aos espaços periféricos das grandes cidades, onde costuma ser letal, atingiu manifestantes de diferentes classes sociais, feriu jornalistas que cobriam as passeatas, além de pessoas que transitavam pelas avenidas nos dias das mobilizações.
Em Belém (PA), a gari Cleonice Vieira de Moraes, de 51 anos, sentiu um mal estar após a explosão de uma bomba de efeito moral ao seu lado. Hipertensa, entrou em óbito. Em São Paulo (SP), um dos casos que ganhou mais notoriedade na mídia foi o da repórter da Folha de S. Paulo Giuliana Vallone, ao ser atingida por uma bala de borracha no olho, quando trabalhava num dia de manifestação contra o aumento da passagem.
Para especialistas no assunto, se antes a bruta repressão policial contra pobres não incomodava a grande parcela da sociedade, no atual momento em que essa violência se expandiu, o modo de atuar da PM ganha novos críticos.
“Agora é o grande momento de colocar em pauta a desmilitarização. A PM sempre foi violenta contra os pobres e ninguém nunca se preocupou. Se aprece uma jornalista de um grande jornal com o olho todo detonado, uma violência extremamente grave e que evidentemente não está legitimada, isso choca muito mais que 20 morrendo na favela.”, enfatiza o professor de direito penal da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Túlio Viana.
Por que a desmilitarização?
A desmilitarização, entretanto, sugere uma série de questões que geralmente estão ocultas aos olhos da população. Ademais, o “despreparo” policial, sempre citado quando a polícia atua de maneira violenta, seria outro mito a derrubar.
“Quando a gente fala em desmilitarização da polícia, muita gente não entende o que estamos querendo dizer. Acha que a gente quer que a polícia ande desarmada. Outros pensam que o problema é a farda. Não tem nada disso. O problema do militarismo é que a sua lógica é de treinar soldados para a guerra”, elucida Viana.
A fala do policial militar Robson e as afirmações de Viana acima são reforçadas pelo exemplo do episódio mais recente ocorrido na favela da Maré, no Rio de Janeiro, no dia 24 de junho, quando 13 moradores da comunidade foram mortos numa ação dos homens do Batalhão de Operações Especiais (BOPE).
“Eles entraram justamente na hora que todo mundo chegava do trabalho e foi um fuzuê danado. Eu consegui chegar à minha casa e me tranquei, porque não tem bala perdida, é só bala achada.”, diz um morador da Maré que não quer se identificar.
A empregada doméstica Marinalva, que também viveu momentos de terror naquela noite na Maré, descreve sobre as horas quase intermináveis de tensão, quando homens do BOPE invadiram sua casa: “Arrombaram minha porta e entraram na minha residência, agrediram por diversas horas meu marido e meu filho e a todo instante nos ameaçavam de morte, falavam mal a gente de bandido e vagabundo e gritavam perguntando sobre armas, drogas e o que fazíamos da vida”.
Linha de ação
Com uma forma de atuação delineada nos tempos da ditadura civil-militar brasileira, a PM tem um treinamento específico para combater os “inimigos” nas ruas.
“O problema de a Polícia Militar ter sido forjada na ditadura incide sobre sua filosofia de atuação. Enquanto outras polícias do mundo são treinadas para abordar o sujeito, fazer averiguação e liberá-lo, ou se cometeu um delito enviá-lo para outras instâncias, como julgamento, no Brasil é diferente: a ordem é aniquilar o inimigo, que nesse caso é o povo”, esclarece Viana.
Para isso, o fator preponderante da violência policial passa pela formação dos soldados, colocando-os contra seus interesses de classe e os subordinando totalmente aos seus comandantes para efetuar qualquer ordem solicitada.
“É pobre combatendo pobre. O soldado, o cabo, está na ponta de todos os interesses do Estado e também privado, por isso, a morte e a lesão ao inimigo é só mais uma ferramenta de coerção a ser utilizada pelo militarismo”, observa o professor de direito penal da UFMG.
Diante disso,o PM Robson revela as humilhações e as práticas violentas sofridas nos cursos de formação e posteriormente nos batalhões pelos soldados, além do direcionamento ideológico receitado na instituição.
“O soldado é tratado como um bicho, um animal, às vezes como um lixo, isso antes e depois da sua formação; tem sempre que baixar a cabeça para tudo e fazer sempre direitinho. Quando sai para rua não pode vacilar” diz o soldado.
É sobre um clima de pressão que o “resultado” tem que aparecer. “Quando vamos para uma missão que tem que tirar as famílias que invadiram um terreno na cidade de São Paulo, por exemplo, é muito estresse, porque temos que cumprir a tarefa, seja da maneira que for”, expõe.
Por onde começar?
O especialista em segurança pública Guaracy Mingardi salienta que a desmilitarização da PM no Brasil levaria anos por conta das mudanças jurídicas e ideológicas que implicam o processo. Para mudar uma polícia do status militar para civil, seria necessária uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) e posteriormente submetida à votação em diversas esferas do governo.
No entanto, ações de cunho imediato poderiam alterar o panorama das corporações militares atuais, sobretudo no que diz respeito aos velhos laços adquiridos na ditadura civil-militar brasileira que perduram até hoje.
“O primeiro passo seria extinguir a Inspetoria Geral da Polícia Militar (IGPM), subordinadas às Forças Armadas, que pode mandar nas ações da PM quando quiser. Para acabar com esse elo, basta uma lei ordinária, não precisaríamos alterar a Constituição”, explica Guaracy.
A IGPM foi instaurada por um decreto de lei nos anos de chumbo no Brasil, no final da década de 1960 para inspecionar a Polícia Militar. Pela nova Constituição Brasileira, de 1988, o órgão não é mencionado, mas como não foi proibido, segue regendo normalmente até os dias atuais.
Segundo Guaracy, outro ponto importante a ser modificado é o regimento interno da PM. “Acabado com a influência da IGPM, teríamos que dar fim às regras militares pesadas e humilhantes que influenciam no ímpeto violento dos soldados nas ruas. Mas, claro, com a existência de uma hierarquia como todo órgão público. Para isso, também não precisaríamos de mutações constitucionais”, diz.
Por fim, outra mudança na PM, que transformaria profundamente seu modo de atuar, corresponde ao fim do tribunal militar. “Você igualar os direitos de um policial no mesmo patamar que de um civil, sem que ele seja julgado pelos seus próprios pares, mas sim como qualquer outro cidadão. Isso traz muitos efeitos benéficos”, expõe o especialista em segurança pública.
Dessa forma, para Guaracy, uma coisa é certa: “Você não pode começar a mirar a mudança da PM somente a partir da Constituição, já podemos começar a fazer agora”, convoca.
*nome fictício
Márcio Zonta No Escrevinhador
*comtextolivre

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