Por que é tão difícil praticar o “amor livre”?
“Amor livre é uma proposta
revolucionária que questiona os modelos disponíveis de amor construídos
socialmente e historicamente, possibilitando que todxs possam criar
novas formas de se relacionar, visando interações não-hierárquicas e de
cooperação mútua – na contramão dos valores capitalistas de
possessividade e exclusividade. Não existe um formato definido de amor
livre, a ideia é justamente ter liberdade para construir novas relações
com diretrizes próprias, o único princípio orientador do amor livre é a
busca pela solidariedade ax próximx, o que explica sua origem entre
pensadorxs socialistas e libertárixs.”
Assim eu começo uma breve nota que tenta resumir um pouco sobre o conceito de amor livre,
essa tentativa quase utópica de construir relacionamentos na contramão
do destino monogâmico: formar uma família nuclear sustentada por um
contrato de casamento e uma propriedade privada.
Sabemos que o amor é algo construído
socialmente, que as formas de se relacionar afetivo/sexualmente foram
muito diferentes em várias organizações sociais. Do formato grego, em
que o homem não podia permitir a criação do vínculo afetivo com a mulher
até os moldes do amor romântico tradicional que idealiza x outrx ao
nível divino. Assim, tendo a noção de que é algo passível de
transformação, nós, feministas e libertárixs, buscamos orientar nossas
práticas afetivas de acordo com a organização social que desejamos – não
hierárquica, horizontal e livre de opressão. Ao negar o modelo monogâmico e heteronormativo que é base do capitalismo e do patriarcado,
abrimos novas possibilidades que muitas vezes se traduzem em relações
abertas ou poliamoristas, nas quais não existe um contrato de
exclusividade das práticas sexuais e afetivas fechado entre xs
parceirxs.
Essas relações de “amor livre” podem
ser muito diferentes entre si, podem incluir acordos específicos, serem
parcialmente centralizadas ou totalmente horizontais entre um número
variável de parceirxs, mas têm em comum a proposta de abrir o diálogo e
encarar os desejos de perto, mediando a dinâmica da relação de forma que
todxs se sintam livres e ao mesmo tempo exista o respeito aos limites
do outrx. É uma negociação bastante complicada por si só, porque exige
comprometimento ético, ao contrário da ideia de desordem que o senso
comum dita sobre o assunto. A ausência de contratos de exclusividade não
pressupõe a ausência de um compromisso com as demandas emocionais dx
parceirx, pois assim voltamos à estaca zero do egoísmo já largamente
perpetuada pelo amor romântico. Fugir desses paradoxos é uma das tarefas
mais difíceis na hora de desconstruir nossos velhos modelos do amor
burguês, que apenas admitem polarizações como matrimônio x libertinagem,
sendo que a tal “libertinagem”, nesse caso, tem muito pouco a ver com
liberdade e muito mais com a completa negligência das necessidades dx
parceirx em uma relação – uma forma de precarização dos vínculos humanos
que também não contempla o ideal libertário da cooperação e serve mais
ao modelo capitalista.
Mas a lista de obstáculos para a cultura
do amor livre é muito mais extensa. Nossa própria forma de organização
social é fundada no modelo do casal heterossexual burguês que ocupa uma
propriedade privada fixa e garante as próximas gerações através da
herança. Esse conceito de família como núcleo central de toda a
sociedade já é um desafio e tanto a ser enfrentado, pois somos
diariamente pressionadxs com o fantasma da marginalização caso não
aceitemos o modelo vigente, convencidxs de que há uma idade limite para
constituir tal núcleo sólido e que, se não o fizermos a tempo, temos um
amargo destino de solidão e abandono pela frente. Acabamos
psicologicamente frágeis diante de tamanha estrutura que nos esmaga, que
é metodicamente pensada para nos empurrar na direção das relações
monogâmicas. A jornada de trabalho diária exaustiva, a fragilidade das
relações humanas em geral em um contexto de extrema competitividade, a
tendência liberal da individualização, tudo colabora para que a maioria
das pessoas ainda se encerre no refúgio particular do casal e idealize o
amor romântico como um porto seguro emocional em uma realidade caótica.
Ao tentar romper com a instituição do casamento, nos deparamos com uma
sociedade que não está pronta para acolher novas maneiras de se
relacionar, que torna nosso tempo e espaço para desenvolver mais
relações com mais qualidade muito escasso, que nos incentiva a oferecer
nossa dedicação a uma única pessoa e a projetar nossas necessidades nela
– ou, no outro extremo, a nos relacionar com várias pessoas de forma
extremamente superficial. Para a classe trabalhadora, a pressão para a
relação de casamento é ainda maior por uma questão de sobrevivência
econômica. E, considerando o fenômeno das famílias monoparentais na
periferia, onde os homens abandonam o núcleo em busca de liberdade e
deixam toda a responsabilidade familiar para as mulheres, chegamos ao
outro fator que freia nossos anseios por relações mais verdadeiras: o sexismo.
Claro,
o grande obstáculo do patriarcado. Anterior até mesmo ao capitalismo, é
um dos maiores problemas a serem enfrentados pelos entusiastxs do amor
livre, porque insere o elemento do poder na dinâmica das relações de
forma desigual. A hierarquia de sexo/gênero que inferioriza as mulheres e
garante privilégios aos homens afeta a todxs nós e se perpetua no nosso
cotidiano, como uma forma de poder difuso e difícil de se combater.
Historicamente, os homens sempre foram livres para se relacionar com
várias parceiras, comumente prostitutas, enquanto as mulheres eram
encerradas no ambiente doméstico como propriedades, no papel de esposas
reprodutoras – quando o adultério feminino surge como resistência.
Dentro da família burguesa, a sexualidade da mulher é controlada de
todas as formas, garantindo que cumpra seu papel enquanto esposa fiel,
responsável pela criação dxs filhxs e manutenção da casa. O mito do amor
romântico legitima o contrato do casamento e assegura o modelo nuclear
de família, às custas da repressão sexual das mulheres.
A dita “Revolução Sexual” trouxe alguns
avanços para as mulheres, como a pílula anticoncepcional e o direito –
em tese – de controlar a reprodução, mas ainda nos deixou muito
distantes da utopia das relações igualitárias. No trecho abaixo, de um
post que fiz recentemente, explico um pouco sobre a situação atual:
“[...]a sociedade aguarda
ansiosamente por qualquer oportunidade de culpabilizar uma mulher por
ter exercido livremente sua sexualidade, por ter sentido tesão, ainda
que se venda uma falsa ideia de “liberdade sexual” e toda a classe média
esteja contaminada com o suposto empoderamento das mulheres nesse
sentido. A “libertação” sexual é estimulada, até um certo ponto, até que
se possa manter o controle público sobre os limites da vida sexual das
mulheres.
Ok, permitimos que vocês façam o que
quiserem, mas arcarão com as consequências do sexismo ainda intocável
que estrutura o pensamento, herança dos tempos mais brutais em que a
libido feminina era crime – o pecado original cristão. Busque o prazer,
os anticoncepcionais, as mil posições do Kama Sutra, o best seller de
BDSM, mas saiba que em caso de gravidez indesejada o aborto é crime e
vamos puni-la, em caso de sextorsão a culpa é sua por ter se exposto, em
caso de estupro seu comportamento sexual será decisivo para culpá-la e
durante o seu parto você será lembrada que “não gritou na hora de
fazer”. Ouse escapar às regras e faremos você se arrepender do prazer
que sentiu, se encher de remorso e culpa por cada orgasmo, porque, no
fundo, tesão feminino ainda é exposto como motivo de vergonha no espaço
público.”
Logo, ainda sofremos com o legado do
pensamento patriarcal mediando as relações entre homens e mulheres –
lógica também reproduzida nas relações homoafetivas. Estigmas tão
arcaicos como o da “vagabunda” em oposição ao “garanhão” ainda estão
fortemente presentes, reforçando a dicotomia puta x santa que regula a
sexualidade das mulheres. Ainda chovem todos os dias casos de mulheres
agredidas e mortas por companheiros que as enxergavam como propriedades e
ainda são classificados como “crimes passionais” ao invés de
femicídios. As denúncias de violência doméstica não param de crescer, os
casos de estupro e abuso sexual são um fenômeno preocupante, o assédio
nas ruas é constante e violento. O quadro é grave e não nos permite
avançar na construção de relações mais livres enquanto não for duramente
enfrentado.
O primeiro passo é admitir que estamos
contaminadxs, que não se trata de associação voluntária ao sistema
capitalista e patriarcal opressor. É a nossa realidade concreta e temos
que partir dela. Temos visto muitos exemplos próximos de relações com
proposta libertária que desmoronam, justamente porque os velhos papéis
sexuais estão tão internalizados que vêm â tona nos momentos de
fragilidade. Ciúmes, mentira, possessividade são heranças difíceis de
desconstruir e teríamos praticamente que recomeçar do zero a pensar
nossas relações. Especialmente para os homens, o poder e o privilégio
raramente são reconhecidos e problematizados. Vale lembrar que mulheres
são criadas para esperarem um príncipe encantado e se dedicarem
emocionalmente enquanto homens são criados para evitar vínculos afetivos
e estigmatizarem a sexualidade feminina. Logo, é muito comum nas
relações supostamente livres ver homens exercendo poder através da
sexualidade, manipulando mulheres com quem se relacionam simultaneamente
para que fiquem umas contra as outras, traindo a confiança da parceira
mesmo com a liberdade do diálogo, restringindo o acesso da parceira a
outros homens, entre outras incoerências e situações abusivas. Ou seja,
homens e mulheres não partem da mesma posição de poder nas relações, por
uma questão estrutural, logo, caberia a eles problematizarem seu papel
quando se propõem a construir uma relação de amor livre.
É importante não cair na armadilha de
substituir uma idealização do amor romântico por uma idealização do amor
livre enquanto a incrível solução para nossos problemas de
relacionamentos. Somos capazes de fazer a crítica sobre as relações que
estão dadas, mas as belas teorias que criamos sobre as novas relações
estão dentro de um longo processo de transformação radical da sociedade.
Enquanto nos relacionarmos nesse contexto, somos reféns de muitas
limitações e não podemos deixar de ser auto-críticxs. Não vale a pena
pintar o amor livre com toda a sua poesia e não reconhecê-lo como parte
dessa estrutura opressora que combatemos a todo momento, como se
fôssemos poderosxs o suficiente para ignorar tudo o que nos enfiaram
goela abaixo desde que nascemos, diariamente. Acredito que é preciso
pautar e construir o amor livre urgentemente, mas sem essa pretensão
revolucionária que parece brotar de egos gigantescos que se julgam
libertxs de todas as amarras – aquelas mesmas que lhes garantem, muitas
vezes, uma posição privilegiada – e ainda criam novos formatos
dominantes. Qualquer proposta de relação, no nosso contexto atual, é
incerta e vulnerável a uma série de problemas, ainda que estejamos
lutando contra um modelo que concentra toda a opressão e o
aprisionamento.
Somos parte da merda toda,
basicamente. Não é uma relação aberta aos trancos e barrancos ou um
poliamorismo de 10 pessoas onde alguém se sente desconfortável que vão
destruir os paradigmas heteronormativos, patriarcais e capitalistas que
mediam nossos relacionamentos. É preciso pensar coletivamente a raiz
dessas relações e como combater efetivamente os antigos modelos que nos
assombram e nos atingem em cheio na primeira brecha, evitando o
fetichismo sobre os formatos novos propostos. Porque, apesar de todas
essas questões e desafios, o que não dá é para engolir ou reformar a
velha tradição monogâmica burguesa e continuar dependente de escolhas
tão precárias toda vez que há interesse em uma relação afetivo/sexual.
Precisamos realmente do tal do amor livre, mas ele precisa ser livre
para todxs, na prática.
*http://cafefeminista.wordpress.com/2013/07/08/por-que-e-tao-dificil-praticar-o-amor-livre/
Será que é tão difícil dar o c*, ou praticar a bigamia sem encher o saco do resto da sociedade? P*rra
ResponderExcluirporque o amor não existe, é uma convenção social, logo não pode ser livre!!
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