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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, julho 07, 2013

O “problema” dos seios desnudos

igualdade-marcha das vadias bh

Por Nikelen Witter*, Biscate Convidada
*Nota Inicial: Neste texto não comentarei sobre o Femen. Existem vários textos excelentes (esse, por exemplo) sobre a organização, portanto, não pretendo repetir aqui o que já foi dito. Some o fato de que não sinto, como feminista, qualquer tipo de empatia ou afinidade com o referido grupo. Feita a nota inicial, segue o baile.
Desde que o Movimento Marcha das Vadias (leia sobre a Marcha aqui no nosso clube) começou, tenho ouvido constantemente críticas às mulheres que mostram SEUS seios (pronome possessivo destacado) nos protestos. Os comentários vão desde o tradicional: “como querem respeito se não se dão ao respeito?”; até os que são colhidos do próprio feminismo e que envolvem a objetificação da mulher ou que acusam as manifestantes de mostrarem os seios para terem a atenção da mídia. Eu poderia elencar a cansativa lista de contra-argumentos sobre estes comentários. Cansativa porque já foram repassados centenas de vezes, ao menos para quem costuma manter-se informado. Também poderia dizer que mesmo que todas estas críticas tivessem fundo de verdade, ainda não teriam razão de ser. Isso porque o corpo exposto nos protestos não pertence aos tais críticos e, portanto, eles nada tem a ver com a decisão das DONAS dos seios de mostra-los ou não.
Por isso a minha opção foi ir à raiz de todos estes comentários e olhar para eles com um olhar infantil, com uma pergunta de criança de 3 ou 4 anos: por quê? Por que não?
As mulheres não podem mostrar seus seios em público.
Por quê?
É feio para uma menina se “expor”.
Por quê?
É coisa de vadia.
Por quê?
É ruim.
Por quê?
Porque os homens ficarão pensando bobagens.
Por quê?
Porque homens são assim.
Por quê?
Ah, é assim!
Por quê?
Se você é inteligente, com certeza percebeu onde todos estes porquês batem. Eles se chocam contra uma imensa parede cultural restritiva dos direitos das mulheres. As desculpas que vão desde a moralidade – que é histórica e temporal, portanto, de validade sempre limitada – até a total e descabida desconstrução do masculino, transformado em “besta selvagem e irracional”. No fim disso está: “mulheres mantenham-se escondidas, fechadas, se guardem para os que podem protegê-las, pois todos os homens não prestam”. O raciocínio todo é retrógrado e fere as mulheres e aos homens. Limita ambos a papéis restritos, impõe formas de comportamento, cerceia uma reivindicação que pertence à raiz da luta contra o patriarcado: o corpo das mulheres pertence as mulheres.
Parece uma reivindicação tola? Óbvia? Um pouquinho de história e antropologia resolve isso. A bíblia permite aos homens vender suas filhas e também as esposas. Caso você não saiba os livros que compõe a bíblia pertencem a épocas diferentes e foram escritos de acordo com o que interessava a tal época, ou seja, não desceram do céu. Por conta disso, em alguns trechos, as filhas e esposas poderiam ser repudiadas, expulsas, prostituídas ou condenadas ao apedrejamento caso fossem desobedientes. O mandamento que fala em não cobiçar a mulher do próximo trata as mulheres como coisas. Aliás, o velho testamento é cheio disso. Mas não pense que isso se restringe à mitologia judaico-cristã. Os romanos proibiam os direitos às mulheres porque consideravam que se tornariam perigosas caso tivessem direitos. Aí você pergunta: perigosas por quê? Perigosas como? Os romanos também proibiram as mulheres de falarem nas ruas, de dizerem o que pensavam. Por quê? (Leia Deusas e Adivinhas, de Santiago Montero). Ao longo da História as mulheres foram tratadas como o outro, o intruso, o macho defeituoso, a subespécie, a coisa incompreensível, o incontrolável a ser controlado, o incapaz a ser desacreditado (leia Inventando o Sexo, de Thomas Laqueur). Foram vistas como pertence, como coisas, como parte daquilo que os homens trocavam, se desfaziam, possuíam, punham sua marca. Por quê? O que assusta tanto?
narcha-das-vadias
Não tome estas perguntas como ingênuas. Não são. Eu não as estou formulando em tom de coitadinha, de mimimi (como gostam de usar na internet). Estou formulando estas perguntas como bandeira, como lança, como ataque! Por quê? Por quê? POR QUÊ?
Mais que tudo: por que você acredita que tem de se dobrar a isso? Seja homem ou mulher, por que acha que esta é a forma correta de ser e se comportar? Por que faz coisas e repete ações sem se perguntar por que faz isso? Por que continua sendo a vaquinha do presépio balançando a cabeça ao “sempre foi assim”?
Uma das coisas que a História me ensinou foi que nenhum comportamento, nenhuma forma de ver o mundo, nenhum tipo de construção cultural é eterno e impermeável à crítica e a mudança. Tudo muda e muda o tempo todo. O passado nos serve para refletir e entender o presente, não para engessá-lo, controlá-lo ou limitá-lo.
Os seios desnudos são uma reivindicação de posse. Qualquer seio é, sendo exibido ou não. Os úteros também são reivindicações de posse, são nossos, férteis ou não, são nossos! Ponto. Não há margem para discussão. Assim como são nossas as pernas, os braços, os cabelos longos e soltos, curtos e curtíssimos, raspados ou moicanos; são também nossas as tatuagens e a ausência delas. É nosso o grito, a voz que fala, o texto escrito, a palavra no microfone, o andar na rua, o estudar, o amar quem quiser, o fazer esportes, o transar quando estiver a fim. Tudo isso, em algum momento, já foi proibido, disciplinado, limitado, estigmatizado. A tudo isso, em algum momento, foi nos foi dito “não, vocês não podem!” Por quê? “Porque vocês são mulheres.” Isto é uma constatação e não uma resposta. Quem diz que não podemos? Por que não podemos? Pense bem. Encontre uma resposta que não seja vazia, tola, religiosa, eivada de preconceito. Pense! Depois responda: por quê? Por que isso te incomoda tanto? E quando você souber por que te incomoda, eu ainda estarei te perguntando, como a mais insistente das crianças: por quê? Por quê? Por quê?
*Nikelen Witter  
*Feminismo.org.br

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