Por Mara L. Baraúna via Luiz Nassif
71 anos de nascimento e 27 de morte de Henfil
Henrique de Souza Filho (Ribeirão das Neves, MG, 5 de fevereiro de 1944 — Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1988)
Inquieto e determinado desde criança, Henrique de Souza Filho, o cartunista Henfil, alugava bicicleta escondido dos pais, apesar dos perigos que corria, já que era hemofílico. Um simples tombo seria fatal. “No início do namoro com a minha mãe, não contou que era hemofílico, sentia dores nas articulações, mas escondia dela. Procurava viver uma vida praticamente normal. E conseguiu. Dizia que a hemofilia não iria impedi-lo de fazer o que amava”, relembra Ivan Cosenza de Souza, fundador do Instituto Henfil e único filho do cartunista.
Henfil cresceu na periferia de Belo Horizonte, onde fez os primeiros estudos, frequentou um curso supletivo noturno e um curso superior em sociologia na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, que abandonou após alguns meses. Foi embalador de queijos, contínuo em uma agência de publicidade e jornalista, até especializar-se, no início da década de 1960, em ilustração e produção de histórias em quadrinhos.
Na adolescência, Henrique frequentou o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), fundado por seu irmão Herbert de Souza. A influência do irmão mais velho foi inegável. Pelas mãos dele participou ainda dos encontros promovidos pela Juventude Estudantil Católica (JEC). Esta vivência seria de oportunidade inestimável, afinal de contas foi em um periódico da JEC, o jornal Resmungo, que publicou seu primeiro cartum, aos 17 anos.
Em 1964, foi para a revista Alterosa, quando surgiria um traço marcante na produção de Henfil: a criação de personagens. Por encomenda do editor Roberto Drummond, Henfil desenhou os fradinhos Cumprido e Baixinho. Com o golpe de 1964, a revista foi fechada pela ditadura. A partir de então Henfil não parou mais de produzir. Em 1965 passou a colaborar com o jornal Diário de Minas, onde fazia caricatura política. Uma antologia com esta produção resultou na publicação do primeiro livro de charges, Hiroshima, meu humor, uma paródia ao famoso filme de Alan ResnaisHiroshima, mon amour.
Em 1967, é convidado pelo filho do teatrólogo Nelson Rodrigues, Jofre Rodrigues, para mudar-se para o Rio de Janeiro e desenhar no popular Jornal dos Sports, para ilustrar os anúncios do jornal O Sol que viria encartado no JS. Os desenhos faziam parte da coluna Dois Toques, feita a quatro mãos com Márcio Rubens Prado. Já se notabilizou ao criar em suas charges novos mascotes para os clubes, o que lhe conferiu grande popularidade, além de politizar a charge esportiva, criando personagens que representavam a realidade social dos torcedores cariocas através da luta de classes: de um lado, a elite burguesa caracterizada pelo Pó de Arroz (Fluminense) e o Cri-Cri (Botafogo); do outro, os populares Urubu (Flamengo) e Bacalhau (Vasco). Começando a ir ao maracanã descobriu que a torcida do botafogo xingava a do flamengo de urubu. Então já tinha um personagem pronto. Já a torcida do vasco era chamada de bacalhau pela do flamengo, por causa dos portugueses. A torcida do fluminense era gozada pelo padrão social elevado da sua torcida, sendo chamados de Pó de arroz. Cri-Cri foi inspirado em cartas de flamenguistas que se queixavam do jeito implicante e chato dos botafoguenses; e Gato Pingado retratava a pequena torcida americana.
Passa então a contribuir também para as revistas Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro
São vários os personagens criados por Henfil: os fradinhos Cumprido e Baixinho, Inspirados nos frades dominicanos de Belo Horizonte, os dois personagens questionavam, com humor ácido e direto, o comportamento da sociedade Estavam lá as críticas mais ferrenhas aos preconceitos raciais e de gênero, ao poder público e seu descaso para com as classes mais pobres e, sobretudo, às contradições da Igreja Católica como instituição de fé; a turma da caatinga, que apareceu pela primeira vez em 21 de agosto de 1972, no caderno B do Jornal do Brasil, formada pela Graúna, Zeferino e o bode Orelana; Ubaldo e o Cabôco Mamadô; a feminista Zilda-Lib e o operário Orelhão, que tinha um companheiro negro, vestido como um típico malando carioca (utilizado em piadas que lidavam com o cotidiano da população, como a inflação e o custo dos alimentos). Havia ainda Xabu – o provocador; Ovídio – representante dos caretas; Tamanduá, o chupa-cérebros; o Preto-que-ri, que reage ao racismo com sonoras gargalhadas; o delegado Flores, que reprime às avessas; o Flautista de Ramelin, persuasivo em seus argumentos e os Três Cangaceiros do Apocalipse.
Sem contar os coadjuvantes dignos de registro, como os Caverinos, os irmãos Lati e Fundi e a onça Glorinha, todos figurantes de charges no alto da caatinga. Para completar, restam as variações de Ubaldo – o Paranóico, que são: Ufaldo, seu irmão empresário; Sam, seu tio e Fonaldo, censor exclusivo do personagem.
Nas páginas de O Pasquim, uma publicação que seria um marco na resistência à ditadura, surgiu do traço de Henfil um de seus personagens mais polêmicos, o Cabôco Mamadô, que estreou em 1972. Em um cemitério atípico, o Cabôco só enterrava pessoas que estavam vivas. O cartunista utilizou a situação para criticar personalidades públicas, que no entendimento de Henfil, haviam colaborado de alguma forma com a ditadura.
Henfil lançaria a Revista Fradim no ano de 1973 .
Em 1976, foi lançado Ubaldo, o paranóico, nascido da aliança entre a criação artística de Henfil e o jornalista Tárik de Souza em outubro de 1975. Tárik esclarece o surgimento do personagem Ubaldo, na abertura do livro A volta de Ubaldo, o paranóico: "Ambos nos acusávamos de paranóicos – e não faltavam razões de todas as ordens para que estivéssemos certos. (...). Até que resolvemos transformar num personagem de papel e traço essas inquietações comuns. Naquele tempo, os arrastões eram feitos pelos militares, que já manifestavam preferência tétrica por finais de semana. Muitos amigos desapareceram assim".
Ainda em 1976, Publicado em 1976, Diário de um Cucaracha narra a passagem de Henfil pelos Estados Unidos.
De 1977 a 1980, fez participação da revista Isto É onde escrevia uma coluna chamada Cartas da Mãe. Dirigidas a sua mãe, as cartas comentam os assuntos mais importantes do momento com o estratagema lúdico de se aproveitar da intimidade e liberdade da relação entre mãe e filho para falar dos assuntos mais prementes.
Henfil trabalha na imprensa sindical como cartunista no fim dos anos 1970. É um dos fundadores do Partido do Trabalhadores - PT, em 1980.
Henfil costumava encher os ouvidos do compositor Aldir Blanc, de suas memórias do "mano" Betinho, exilado desde 1971. Sensibilizado com o falecimento de Charlie Chaplin, João Bosco compôs uma linda melodia em sua homenagem e chamou Aldir para mostrá-la. Aldir letrou a música e fez uma singela homenagem ao rimar "Brasil" com "irmão do Henfil", esta rima, que por sua vez teve papel de emoção, mobilizição, transformação e incentivo a uma nação reprimida. Aldir afirmou que se dissesse "Betinho", ninguém reconheceria, a referência ao irmão Henfil era mais forte, ele já tinha fama na época, enquanto a imagem pública de Betinho veio a se formar com força já pelos anos noventa, principalmente após a criação da "Ação da Cidadania". Herbert de Souza, o Betinho, ouviu pela primeira vez a canção, na doce voz de Elis, exilado no México. Seu irmão o telefonou e pôs, sem nada avisar, para que ouvisse. Ao enviar a fita cassete, Henfil escreveu um recado: "Mano velho, prepare-se! Agora nós temos um hino e quem tem um hino faz uma revolução!". Dito e feito! A campanha pela anistia irrestrita foi a primeira movimentação nacional que obteve sucesso desde o início da sangrenta ditadura militar no Brasil.
Além dos quadrinhos a obra de Henfil conta ainda com um filme, uma peça de teatro, diversos livros e um quadro fixo na televisão. No filme “Tanga – deu no New York Times?”, lançado em 1988, Henfil fez o roteiro, dirigiu e atuou, interpretando o personagem Kubanin (cujo nome foi inspirado no anarquista russo Mikhail Bakunin).
Responsável por batizar o movimento das "Diretas Já!", Henfil teve uma importante participação nesta nova fase política do Brasil, influenciando a vida política e social, participando de movimentos políticos importantes, como o da Anistia,envolvendo-se em comícios, arrecadação de fundos, elaboração de material de propaganda, dentre outras ações.
De origem familiar modesta, desenvolveu sua formação individual e política naquilo que ele chamava de “complexo hospitalar-favelado”, situado no bairro de Santa Efigênia, periferia de Belo Horizonte. Essa vivência comunitária, que ele buscava reforçar ao afirmar: “sou fiel ao útero onde cresci e de onde trouxe as marcas do que sou hoje”, não só lhe ofereceu intimidade com um universo misto de pobreza, solidariedade e morte, como aprofundou sua preocupação com as questões ligadas à política e aos problemas sociais.
No dia 4 de janeiro de 1988 o Brasil perdia o humor do cartunista, jornalista e escritor. Henfil morreu no Rio de Janeiro, vítima de Aids, doença contraída em uma transfusão de sangue, ocorrência comum na época, já que havia ainda pouco conhecimento sobre a doença e a necessidade de cuidados específicos para preveni-la. Ele tinha a saúde precária, assim como seus dois irmãos, Herbert de Sousa, o Betinho, e Chico Mário, que também morreram de Aids. Henfil ainda tinha outras cinco irmãs. Tornou-se, infelizmente, símbolo de outra luta, assim como seus irmãos Betinho e Chico Mário.
Fontes:
A charge como agente transformador da realidade: uma análise de sentido do humor gráfico de Henfil no livro “Diretas Já”, por Marcio Acselrad e Ilo Aguiar Reginaldo Alexandre
Cultura e política nos quadrinhos de Henfil, por Maria da Conceição Francisca Pires
Diretas já era: a estratégia de redemocratização de Henfil, por Márcio Malta
A graúna de Henfil e a crítica nos anos de Chumbo no Brasil, por Gildemberg de Lima
Henfil, um dos maiores cartunistas do Brasil, por Liz Batista
Henfil, a ditadura e os dois enterros de Elis, por Sérgio Luz
Henfil e as Diretas Já, por Fernando do Valle
O hino da anistia, por Mário Lucio
Humor de combate: Henfil e os 30 anos do Pasquim, por Dênis de Moraes
Zezé, Ninita e Chiquim, por Maria da Conceição Francisca Pires
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