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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, outubro 12, 2010

Porque hoje é Dia das Crianças





Para as crianças que trabalham: parabéns pelo seu dia!

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Hoje é Dia das Crianças. Data comercial, menos importante economicamente que o Natal, o Dia das Mães e o Dia dos Namorados (nessa ordem) mas, ainda assim, com um significado para muita gente – e, portanto, a ser respeitada. Mas enquanto alguns desembrulham seus carrinhos e bonecas (ou videogames, celulares e iPods), outros vão passar a terça-feira trabalhando. No máximo, darão uma paradinha para ir à missa, devido a hoje também ser o Dia da Padroeira do Brasil. Por isso, vou retomar algo que já apareceu por aqui, mas que cabe como uma luva para a data.
Milhares de crianças e jovens no Brasil abandonam a escola e trabalham desde cedo para ajudar as finanças em casa ou mesmo se sustentar. Perdem dedos nas máquinas de apurar fibras de sisal, queimam braços e pernas nos fornos de carvoarias, catam latinhas de alumínio nos lixões das grandes cidades, fazem malabarismos em semáforos. Em casos extremos, são obrigados a trabalhar só por comida e impedidos de sair enquanto não terminarem o serviço.
As Nações Unidas estipularam a meta de acabar em 2016 com as piores formas de exploração infantil. Particularmente, acho que não vai dar. Nem lá fora, nem aqui. Apesar dos avanços aqui e em vários cantos do mundo, não temos agido com a velocidade necessária para combater a miséria e a pobreza (que empurram crianças para o trabalho degradante), a impunidade (que garante a certeza de liberdade para quem rouba a infância) e a ganância (a facilidade de ganho fácil de quem explora esse tipo de mão-de-obra barata em suas cadeias produtivas). Cansei de ouvir e presenciar histórias assim nos últimos anos. Reuni algumas delas:
- A Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Pará encontrou 30 crianças escravizadas, entre um grupo de adultos, no município de Placas (PA), em área de difícil acesso, às margens da Rodovia Transamazônica. Fazenda de cacau. Uma das crianças ficou cega após acidente de trabalho. Ela estava carregando o cacau, quando tropeçou em um tronco e caiu com o olho esquerdo em um toco de madeira. A maioria das crianças estava doente, algumas com leishmaniose e outras com úlcera de Bauru.
- Um outro grupo de 30 crianças e adolescentes, entre 6 e 17 anos, trabalhava na colheita de limão em condições precárias e com atraso de salário em Cabreúva, a cerca de 70 km da capital de São Paulo. A sorte deles só mudou graças a um adolescente resolver sair e denunciar à Polícia Militar que não estava recebendo remuneração pelo serviço. Passavam fome e frio.
- Em um posto de combustível, ao deixar o Maranhão e entrar no Tocantins, meninas, baixinhas, franzinas, usavam a voz de criança para oferecer programas. Entravam em boléias de caminhão e, por menos de R$ 30,00, deixavam sua inocência do lado de fora.
- No Pará, em Eldorado dos Carajás, ouvi um garimpeiro reclamar que o bordel que frequentava só tinha “puta com idade de vaca velha”. Ou seja, 12 anos. Para levar, de R$ 20,00 a R$ 40,00.
- Uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego encontrou mais de 25 crianças e adolescentes em matadouros públicos nos municípios de Nova Cruz, João Câmara e São Paulo do Potengi, no Rio Grande do Norte. Muitos trabalhavam com os pais no descarnamento de bois e curtimento de couro sem nenhum equipamento de proteção, pisando descalços sobre o sangue derramado, com uma faca na cintura. Uma menina, de 15 anos, que retirava esterco das tripas disse que recebia em produtos para levar para casa. “Em alguns casos, o pagamento é em comida que você dá normalmente para o cachorro”, afirmou a coordenadora da ação de fiscalização.
- Dentre trabalhadores libertados da escravidão em uma fazenda de gado no Pará, um rapazinho de 14 anos, analfabeto, me contou que morava em uma favela na cidade com a família adotiva e ia ao campo para ganhar dinheiro. Foi dado de presente pela mãe aos três anos de idade e trabalhava desde os 12 para poder comprar suas roupas, calçados, fortificantes e remédios – afinal de contas, já havia pegado uma dengue e cinco malárias. Com o que ganhava no serviço, também comprava sorvetes e lanches para ele e seus amigos. E só. Segundo Jonas, a adolescência não é tão divertida assim. “Brincadeira lá é muito pouca”, explicou ele.
- Pedro perdeu a conta das vezes que passou frio, ensopado pelas trovoadas amazônicas, debaixo da tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Nem bem amanhecia, ele engolia café preto engrossado com farinha de mandioca, abraçava a motosserra e começava a transformar a floresta amazônica em cerca para o gado do patrão. Analfabeto, permaneceu apenas dez dias em uma sala de aula por causa da ação de pistoleiros no povoado onde ficava a escola. Depois, nunca mais. Passou fome, experimentou dengue e por dois anos não recebeu um centavo pelo serviço, só comida. “Trabalhar com serra é o jeito. Senão, a gente morre de fome.” Não sabia a data do seu aniversário e nem o que se comemorava no dia 1º de maio, dia em que foi encontrado pela equipe do Ministério do Trabalho e Emprego durante fiscalização na fazenda. Tinha 13 anos.
O pior de tudo? Criança trabalhando é algo normal para tanta, mas tanta gente, que se torna um serviço ingrato convencê-los de que o lugar delas é estudando e brincando. Se toda uma nação fosse contra isso, teríamos uma mudança real e seria mais fácil atacar essas formas deploráveis de exploração de nossas crianças. Mas não, pois, para muito, trabalhar desde cedo forja o caráter. Liberta… Ah, onde eu vi isso?… Sim, em um portão de um antigo campo de concentração. Enquanto aguardamos o Brasil descobrir que o caminho não precisa ser esse, vamos conquistando vitórias apenas a conta-gotas.
Enfim, como eu disse, Feliz Dia das Crianças!
 

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