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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, novembro 28, 2011

'Banco público impede submissão da política ao poder econômico'

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Os países que preservaram instituições estatais conseguiram resistir às pressões neoliberais e priorizar desenvolvimento, geração de emprego e combate à pobreza. A maior parte está na Ásia e América Latina e é menos afetada pelas desregulamentação financeira. Nestes países, entre eles o Brasil, o Poder Político não está submetido ao Poder Econômico. No Primeiro Mundo, os sacrifícios impostos à classe trabalhadora suscitam o surgimento de uma nova esquerda. O artigo é de Paul Singer.

A decisão do [então] primeiro ministro da Grécia de submeter o próximo pacote de “ajuda” da Europa ao seu país a uma consulta popular desencadeou uma queda espetacular das cotações nas bolsas de valores no mundo inteiro, colocando em foco a profunda contradição entre o Poder Político e o Poder Econômico nos países capitalistas democráticos, que hoje são a grande maioria das nações. Uma decisão que deveria ser normal em qualquer democracia – a de consultar o povo, do qual o governo, isto é, o Poder Político, é o representante – acaba de provocar pânico entre os donos do capital financeiro, que hoje detém a hegemonia do poder.

A mesma contradição é a fonte da motivação essencial do movimento hoje mundial dos Indignados, que desde 15 de outubro promove a ocupação das praças centrais dos distritos financeiros de 951 cidades em 82 países. O que os Indignados demandam, acima de tudo, é que a democracia formal, vigente nestes países, se torne real, ou seja, que o Poder Político eleito pelo povo de fato o represente, em vez de executar políticas que beneficiam exclusivamente a classe que exerce o Poder. O que evidencia a contradição de interesses entre a maioria do povo – os 99% que os ocupantes de Wall Street almejam representar – e o 1% que constitui a elite do Poder.

A contradição entre Poder Político e Poder Econômico se explica pela origem de um e outro Poder. Em democracias, o Poder Político é exercido pelos eleitos pela maioria dos cidadãos, que é necessariamente constituída por trabalhadores não proprietários de meios de produção social, boa parte dos quais ganha a vida como assalariados de empresas capitalistas; ao passo que, no capitalismo, o Poder é exercido pelos capitalistas, mas não por todos por igual.

Os empresários da economia real, isto é, cujas empresas produzem bens e serviços que atendem necessidades humanas, dependem de crédito tanto para financiar vendas a prazo quanto para investir em matérias primas, maquinário, instalações etc., na medida em que a demanda por sua produção se expande; o crédito é concedido por bancos, fundos de investimento e outros intermediários financeiros. A renda não gasta pelas famílias, empresas e governos é depositada nestes intermediários, que a redistribuem na forma de empréstimos aos governos, empresas e famílias cujos gastos superam sua renda.

Os bancos, fundos etc., que são empresas capitalistas, visam maximizar seus próprios lucros, emprestando a juros maiores do que pagam aos depositantes e aplicando parte dos depósitos que lhes são confiados em títulos de propriedade de firmas (ações) ou de débito emitidos por governos e empresas. Commodities, ações de novas empresas e cotas de fundos de investimento são transacionados em leilões diários nas bolsas de valores e suas cotações flutuam ao sabor das oscilações de oferta e demanda pelos mesmos.

A maior parte dos participantes nestes leilões são especuladores, que procuram adivinhar em que ativos irão se concentrar as preferências da maioria para adquiri-los antes que se valorizem e quais ativos serão vendidos, para vendê-los antes que se desvalorizem. Obviamente, uma parte dos especuladores faz antecipações erradas e, por isso, perde dinheiro para os seus felizes competidores, cujas apostas anteciparam o futuro corretamente.

Trata-se de um jogo de apostas, mas que afeta o andamento da economia real. Se o otimismo prevalecer nas bolsas de valores, os especuladores comprarão ações e títulos de crédito, cujas cotações subirão, o que permitirá aos empresários obter mais facilmente dinheiro para expandir suas atividades; o crescimento da produção da economia real confirmará as expectativas otimistas dos detentores do dinheiro depositado neles pelos poupadores, levando-os a reiterar as compras de títulos e assim por diante. O resultado será a formação de uma típica bolha de valorização de ativos, cujo efeito será acelerar a expansão das atividades econômicas, até que elas esbarrem em pontos de estrangulamento, que impedirão a continuação do crescimento.

Os pontos de estrangulamento são constituídos por recursos indispensáveis à produção e à distribuição, que exigem tempo para serem multiplicados, como, por exemplo, a produção e distribuição de energia elétrica, os meios de comunicação e de transporte, a mão de obra com escolaridade acima da fundamental etc.. Os pontos de estrangulamento elevam o custo de produção e distribuição de bens e serviços, suscitando círculos viciosos de elevação de preços e salários, que resultam em inflação cada vez maior, contra a qual o Poder Político é forçado a agir, reduzindo a disponibilidade de crédito e o gasto público.

O mero anúncio destas medidas de “austeridade” basta para que as expectativas dos especuladores financeiros se invertam, passando de otimistas a pessimistas, pois eles sabem que elas reduzirão a demanda por títulos nas bolsas, fazendo com que suas cotações desabem.

Inflação e renda
Em suma, o Poder Político é induzido a conter a inflação atendendo ao interesse dos capitais financeiros, que temem a desvalorização da moeda, ocasionada pela subida dos preços. A inflação exige a ampliação da oferta de moeda, que é a “mercadoria” que os intermediários financeiros transacionam. Sua desvalorização prejudica diretamente bancos e fundos, cujos capitais são constituídos, em sua maior parte, por tesouros em forma da moeda corrente do país.

Na verdade, a inflação prejudica também todos que dependem de rendas fixas, entre os quais estão também os trabalhadores informais, que estão excluídos de normas contratuais ou legais que reajustam rendas ou depósitos automaticamente por índices periódicos de inflação. Esta circunstância permite aos porta-vozes dos interesses financeiros proclamarem que é necessário paralisar o crescimento econômico tão logo pressões inflacionárias se fazem sentir, porque a inflação é o mais cruel dos impostos, pois pune os mais pobres. Na realidade, pune os mais pobres e os mais ricos, sendo óbvio que os últimos podem suportar perdas muito melhor que os primeiros.

A experiência histórica do final do século passado mostra que realmente inflação elevada e persistente pode prejudicar seriamente o funcionamento dos mercados e, quando atinge o limite da hiperinflação, tornar impossível o prosseguimento do desenvolvimento econômico; uma vez atingido este estágio, a estabilização dos preços exige o encolhimento da demanda efetiva total por bens e serviços, com efeitos negativos para a economia real, prejudicada pela dificuldade de vender com lucro suas mercadorias.

Como governo algum se arrisca a lançar a economia em hiperinflação, as fases de crescimento rápido são abortadas pelo Poder Político mediante políticas de estabilização que se caracterizam pela elevação das taxas reais de juros, proporcionando grandes lucros aos capitais financeiros.

Isso comprova mais uma vez que, no capitalismo contemporâneo, o Poder Político não pode deixar de praticar políticas, que em nome do interesse geral, de fato priorizam o capital financeiro, reforçando a hegemonia deste sobre o Poder Econômico. Convém observar que, se a intermediação financeira fosse atribuição exclusiva de bancos públicos, a estabilização dos preços em vez de concentrar a renda, como acontece hoje, reforçaria a participação do Poder Político na renda nacional, possibilitando-lhe ampliar políticas redistributivas e deste modo tornar a distribuição da renda mais justa.

Aqui reside o caráter contraditório do relacionamento entre Poder Político e Poder Econômico. Os governos desejam em geral que haja prosperidade; embora esta possa beneficiar todas as classes, o excedente econômico assim gerado sempre é apropriado pelos capitalistas. Os trabalhadores só se beneficiam pelo aumento do emprego, que viabiliza em alguma medida as campanhas sindicais por melhoras salariais. Só que estas somente são obtidas após muita luta contra a resistência patronal, ao passo que a apropriação do excedente pelos donos e administradores dos capitais é imediata: sendo as mercadorias produzidas pelos trabalhadores propriedade dos capitalistas, o lucro a mais decorrente do maior volume de vendas é deles. O que os trabalhadores podem receber a mais será pelas horas extras eventualmente trabalhadas, o que explica a forte concentração da renda que ocorre sempre quando o crescimento econômico perdura.

Para se contrapor à concentração da renda, governos comprometidos com os interesses e aspirações das classes trabalhadoras podem tributar os ganhos extraordinários dos capitalistas e aplicar a receita pública adicional em políticas redistributivas. Políticas como estas, no entanto, provocam a desconfiança dos operadores financeiros, que reduzirão suas aplicações na economia nacional, lançando-a em crise. Sabedores disso, governos de esquerda evitam ferir a confiança do capital financeiro, o que explica sua frequente conversão ao neoliberalismo.

No capitalismo contemporâneo, o Poder Econômico, ao contrário do Poder Político, deixou de ser nacional para se tornar global, sendo dominado por um limitado número de gigantescas transnacionais financeiras. Estes capitais tomam em geral a forma de bancos demasiado grandes para que os governos possam correr o risco de deixá-los quebrar. Eles estão interligados por interesses financeiros, o que lhes permite atropelar o Poder Político de países que não se submetem aos seus desejos.

O Poder Econômico privado conseguiu monopolizar a distribuição do dinheiro internacionalmente aceito, a moeda “forte”, representada principalmente pelo dólar, graças à influência que exerce sobre instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), o que lhe permite impor sua vontade ao Poder Político de nações que não têm o status de superpotências, como está claro no caso da Grécia e de mais uma série de outros países que simplesmente perderam a confiança do Poder Econômico global, de que sejam capazes de honrar suas dívidas externas. Para reconquistar esta confiança, estão sendo obrigados a aplicar políticas econômicas de austeridade que lançam suas economias nacionais em longas e profundas crises.

Bancos públicos
A voga do neoliberalismo que assolou o mundo nos últimos 32 anos fez com que muitos países vendessem seus bancos públicos a capitais privados, o que tornou seus governos inteiramente dependentes dos intermediários financeiros privados. Estes governos, para reter a confiança das finanças capitalistas, foram obrigados a equilibrar seus orçamentos, procurando reduzir seus déficits e conter o crescimento da dívida pública. Além disso, tiveram de priorizar o combate à inflação, reduzindo a despesa pública e o ritmo do crescimento econômico.

O efeito destas políticas foi reduzir a demanda por mão de obra das empresas, ampliando o desemprego, enfraquecendo os sindicatos e suas lutas por melhores salários e condições de trabalho. A contenção da despesa pública debilitou as políticas redistributivas e os sistemas públicos de saúde, educação e previdência, que estão sendo em parte privatizados.

Os países que preservaram seus bancos públicos e os ampliaram de acordo com as necessidades puderam resistir às pressões neoliberais e continuar priorizando o desenvolvimento e o combate à pobreza, ampliando e aperfeiçoando suas políticas sociais e mantendo a expansão do emprego, de modo a evitar o desemprego em massa, sobretudo o de longa duração.

Atualmente, os países que optaram por esta alternativa se encontram em sua maior parte na Ásia e na América Latina e constituem as economias emergentes que mais crescem no mundo e menos são afetadas pelas crises produzidas pela especulação financeira desregulamentada. Nestes países, entre os quais se encontra felizmente o nosso, o Poder Político não está submetido ao Poder Econômico.

Na América do Norte e na Europa o peso do legado neoliberal subordina o Poder Político à ideologia e aos interesses do Poder Econômico. Daí resulta o marasmo econômico, a persistência do desemprego em massa e da pobreza, com o aumento inegável da desigualdade socioeconômica. Nos países do Primeiro Mundo, os sacrifícios impostos à classe trabalhadora e, em especial, à juventude estão suscitando o surgimento de uma nova esquerda, que diferentemente da velha esquerda não pauta a conquista do poder como ponto de partida para a reversão de uma situação insuportável.

A rebelião dos Indignados tem por alvo a restauração da autenticidade democrática por meio da indispensável subordinação dos interesses da minoria privilegiada à vontade da maioria. Para tanto, ela terá de revelar os liames políticos e econômicos que amarram os representantes eleitos ao Poder Econômico, que retira sua força de uma globalização dominada pelo capital financeiro e que impede que o Poder Político, limitado ao âmbito nacional, possa cumprir suas plataformas eleitorais.

Obviamente, para restaurar a autenticidade democrática e a supremacia do Poder Político, será necessário desenvolver, ao lado do capitalismo, uma economia em que o capital seja propriedade coletiva dos trabalhadores que o utilizam, como sempre foi em toda longa história da humanidade que precedeu a Revolução Industrial. Esta “outra economia” já está sendo desenvolvida em numerosos países e terá como resultado a diversificação do Poder Econômico, tornando-o em boa parte afinado com as necessidades e desejos dos que hoje são explorados e alienados.

*Paul Singer é secretário nacional de Economia Solidária do ministério do Trabalho.
*CartaMaior

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