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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, agosto 18, 2013

Robert Fisk: Outro “estadista” que falasse como John Kerry seria tratado como ladrão





Tzip Livni (E), John Kerry (C) e Mahmoud Abbas (D)
John Kerry não tem vergonha?  Primeiro, se agarra aos dois lados, palestinos e israelenses, e anuncia a renovação de um “processo de paz” em que os palestinos não confiam e que os israelenses não querem. Em seguida, Israel anuncia que construirá 1.200 novas moradias para judeus – e só para judeus – em terra palestina ocupada. E, agora, Kerry diz aos palestinos – os fracos e ocupados palestinos – que já praticamente não têm mais tempo, se querem estado palestino.
Qualquer outro “estadista” envolvido em qualquer disputa que dissesse a povo submetido a ocupação que, se não fizer a paz, seus ocupantes roubarão ainda mais terras deles, seria visto como marginal, ladrão, criminoso potencial. Mas não. John Kerry anuncia que colônias ilegais para judeus – ou “assentamentos” como prefere chamar as colônias ilegais, acompanhado pela imprensa-empresa ocidental subserviente a Israel – são “ilegítimas”. Talvez quisesse dizer internacionalmente “ilegais”. Mas não importa.
Nos primeiros dez anos do “processo” de Oslo, o número de israelenses que vivem em terra palestina dobrou: já são 400 mil. Nem surpreende que Kerry tenha dito que o mais recente anúncio de roubo de terras pelos israelenses foi “em certa medida [sic] esperado”.
É claro que era esperado. Israel há décadas enrola  governos norte-americanos covardes, ignorando o embaraço que gera em Washington cada vez que empreende mais um roubo de terra palestina. Os acordos de Oslo, lembrem, previam um período de cinco anos, durante os quais israelenses e palestinos comprometiam-se a não empreender “quaisquer passos unilaterais” que pudessem “prejudicar o resultado das negociações”. Israel simplesmente ignorou essa parte do acordo. E continua a ignorar. E o que Kerry aconselha aos palestinos? Que não “reajam adversamente”.
É absurdo! Kerry tem de saber – como a ONU e a União Europeia sabem – que não há sequer alguma remota chance de haver “Palestina” como estado, porque os israelenses já roubaram terra demais dos palestinos, na Cisjordânia. Quem ande em torno dos territórios palestinos vê imediatamente (a menos que seja politicamente cego) que há tanta probabilidade de construir-se algum estado na Cisjordânia – cujo mapa de colônias e distritos não colonizados parece um parabrisas estilhaçado – quanto de se recriar o Império Otomano.
E Kerry? É homem cujas declarações, todas elas, têm de ser colonizadas pela palavra “sic”. Vejam essa, por exemplo: “Sempre soubemos [sic] que haveria uma continuação de alguma [sic] construção [sic] em alguns [sic] locais, e creio que os palestinos entendem isso.” E acho que também seria preciso meter um “sic” depois de “entendem”.
Em seguida, vem Kerry e conta que “o que isso” – “isso”, de que Kerry fala aí é “roubo de terras” – “mostra, realmente [mais um “sic”], é a importância de sentar à mesa... e rápido.” Em outras palavras, o que ele agora está dizendo é façam o que estamos dizendo que façam – ou deixaremos que os israelenses rapinem o que resta da propriedade de vocês. No mundo real, chama-se chantagem.
E veio então a mentira mãe de todas as mentiras: que a “questão dos assentamentos” fica “mais bem resolvida, resolvendo-se o problema da segurança e das fronteiras”. É conversa fiada. As colônias – os “assentamentos” como Kerry insiste em chamar aqueles roubos continuados de terra – não são ocupadas por Israel por causa de “segurança” ou de “fronteiras”, mas porque a Direita israelense, que continua a controlar o governo com Netanyahu, deseja para si aquela terra. Muitos israelenses não querem aquela terra. Muitos israelenses veem a vileza daquele roubo continuado de terras e o condenam. Eles merecem a paz e a segurança que o mundo lhes deseja. Mas que não alcançarão pela colonização, e sabem disso. Pois Kerry não está do lado desses israelenses.
Kerry trabalha pela “paz” nos termos do governo israelense. E os palestinos – “cercados, atados, confinados” [1] – têm de calar e aceitar o que lhes restar. Receberão alguns poucos cacos. 26 prisioneiros idosos serão libertados hoje. Migalhas para Mahmoud Abbas e seus escudeiros. Mas mais colônias para Israel, país que sequer disse, até hoje, nem a John Kerry nem a nós, onde, diabos, está sua fronteira leste. Na velha “linha verde” de 1967? Na “linha” colonial leste de Jerusalém? No rio Jordão? Mas para Kerry, é: “rápido, rápido, rápido”. Reservem logo seus ingressos, que vai lotar. O que a “Palestina” terá ainda de pagar?
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[*] Robert Fisk é filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial, Robert Fisk estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabahou como correspondente internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por seu editor no The Times para substituir o correspondente do jornal no Oriente Médio. Fisk trabalhou para The Times até 1988, quando se mudou para The Independent - após uma discussão com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Fisk cobriu a guerra civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982), a guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda (em 1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão).
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro britânico mais premiado. Recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio à Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000.
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Nota dos tradutores
[1] Orig. cabined, cribbed, confined. É expressão de Shakespeare, em MacBeth.

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