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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, maio 08, 2015

Mujica: “Tenho medo dos sem partido”



Publicadono Unisinos.

Foi guerrilheiro a metade de sua vida, passou 15 anos na prisão, viveu na montanha, na clandestinidade, e agora diz que está velho e não sabe como estará dentro de cinco anos para voltar a concorrer à presidência do Uruguai. Mas, escutando José Mujica, ninguém diria que o político está no fim de sua carreira. Enérgico, influente como poucos na região, atento a tudo e a todos, Mujica viajou a Buenos Aires para lançar o livro sobre seu período na presidência, “Uma Ovelha Negra ao Poder”, de Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz, que ainda não foi lançado no Brasil.


Viaja agora para a Espanha para reencontrar suas origens bascas. Fechou o círculo?
Sim, agora vou para Muxica, para lembrar a família do meu pai. E, depois, a uma cidadezinha da 
Itália, perto de Gênova, onde está a família da minha mãe. Vou porque estou entrando numa idade 
que, se não for agora, não vou mais. 
Dizem que o senhor vai voltar a ser presidente do Uruguai, que continua sendo referência.
Continuo sendo referência, mas não sei como vou estar dentro de cinco anos! Tenho 80, pensar nos 
85 é corajoso, não? 
O senhor se interessa pela Espanha. O Podemos atribuiu sua inspiração à esquerda latino-
americana. Vê semelhanças?
Parece que, quando as pessoas passam por uma profunda crise como a da Espanha, o melhor é que as 
tensões possam ser canalizadas politicamente. O fato de a crise da Espanha ter produzido uma coisa 
como o Podemos me parece o mais saudável. É um fenômeno mais maduro. E por isso mais 
manejável. Imaginemos uma França que se fecha, que não quer nada com a União Europeia, com os 
negros. Aonde vamos? Por isso aposto sempre na política. 
A política está mudando?
A crise da política apenas acentua o individualismo. Prefiro que as pessoas não estejam com a 
esquerda, mas que estejam com a política. Pagaria esse preço. A antipolítica é aventureirismo ou 
fascismo. Prefiro a política conservadora, mas a política. 
  


Tem medo do populismo?
Tenho medo dos sem partido, os que não respondem a nenhuma disciplina. Os partidos são o 
primeiro elemento de controle que os indivíduos têm. Seja o PP, o socialismo, Podemos. Mas é algo 
coletivo. Mas, cuidado, se o populismo é luta para elevar o nível de vida das pessoas ou as políticas 
de igualdade, muitos podem cometer esse pecado. A fronteira disso é quando as medidas tomadas 
paralisam a economia, porque você quer dividir tanto, que no final rompe o interesse no trabalho e 
no investimento. Se você matar isso, não tem para dividir. Eu chamaria isso de populismo.

Está falando da Venezuela?
A Venezuela tem a desgraça do petróleo. O país mais roubado da América Latina. Como pode andar 
uma sociedade em que uma garrafa de água custa mais do que um litro de gasolina? 
O senhor recomendou a Maduro que não prenda os oposicionistas?
Acho que há um interesse em ir preso na Venezuela. É uma técnica, é a forma de lutar da oposição. 
Induzem o Governo a passar dos limites. Com isso criam uma contradição internacional notável, e 
esses bobos caem. Eu disse isso a eles. É um erro. 
As pessoas protestam e se distanciam da política no Brasil, no Chile, por causa da corrupção. 
As novas gerações são mais exigentes?
Temos um flagelo interior de caráter ético. Quando o afã de fazer dinheiro se mete dentro da política, 
isso mata a nós da esquerda. Por que a corrupção prolifera tanto? Parece sensato que pessoas de 60, 
70 anos se sujem com pesos imundos? Sabem que têm pouca vida pela frente! A questão de ter 
dinheiro para ser alguém pode ser uma ferramenta de progresso no mundo do comércio, onde há 
riscos empresariais, mas, quando se insere na política, estamos fritos. Isso aconteceu na Itália, em 
parte na Espanha. É inexplicável isso no Brasil. E aqui na Argentina o vice-presidente está sendo 
processado. 
No livro diz que no Brasil parecer impossível fazer política sem ceder à corrupção.
A democracia moderna é muito cara. O Brasil é muito grande, tem Estados que são como países. Ali 
há partidos locais, e o que conquista o Governo nacional tem de negociar com eles. Aí começa tudo. 
Vem uma época difícil para a esquerda latino-americana?
Não sabemos. A direita também não está dando muitas respostas, não acho que possa fazer 
maravilhas. Acho que estamos em um momento de retrocesso da esquerda na Europa e certo grau de 
estancamento na América Latina. 
Como alguém que foi guerrilheiro vive a aproximação entre EUA e Cuba?
Era um resquício da guerra fria, é preciso acabar com isso. Nos EUA muita gente acredita que isso 
vai levar a mudanças na sociedade cubana, e os cubanos acham que vão resistir. A história vai 
decidir. Os cubanos têm um ponto forte: mandam milhares de médicos para o exterior e o grau de 
deserção é mínimo. Poderão resistir? Não sei, porque será preciso ver o efeito da entrada em Cuba da 
“magia da mercadoria”, nas palavras de Trotsky. 
Está mediando o conflito da Colômbia?
Não estou mediando nada. Mas tenho que ter uma conversa com esse pessoal das FARC pelas 
dificuldades na negociação. Não lhe posso dizer nada porque, do contrário, estou queimando tudo. 
Mas tenho de falar. 
Está otimista?
Nunca se esteve tão perto. Vale a pena resistir. Manter um conflito in aeternum não é estratégia para 
nada. A geografia colombiana é de terror. Perseguir as FARC nessas montanhas é infinito. A 
guerrilha poderá não triunfar, mas acabar com eles é impossível. É a guerra ucrônica, permanente. O 
presidente Santos tem boa fé, mas há resistência dentro e eu gostaria de ver se quem está 
representando as FARC nas negociações em Cuba é obedecido em todo o campo das FARC. Quando 
alguém está com as armas na mão a política passa pela mira. É um problema que os homens armados 
sempre têm. Tendemos a ver a estratégia política através das armas, desconfiamos dos demais. 
O senhor é a prova de que se pode chegar ao poder depois de deixar as armas.

Eu, sim, mas conheço as doenças. Custa muito às organizações armadas ter capacidade política para 
negociar. Mas entramos em outra época. Com o avanço tecnológico, a guerra é uma ilusão de ótica 
que a tecnologia dirime. Nada tem a ver com o heroísmo. Submeter-se a que te matem por controle 
remoto… Hoje é possível fazer os Governos passarem bastante mal sem disparar um tiro. Não é 
preciso ir para a serra.

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