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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

O novo fetiche do capitalismo

Por Frei Betto, no sítio da Adital:

A modernidade, período que se estendeu pelos últimos cinco séculos, está em crise. Vivemos, hoje, não uma época de mudanças, mas uma mudança de época. No milênio que começa emerge algo imprecisamente chamado de pós-modernidade, que se insinua bem diferente de tudo o que nos antecedeu, imprimindo novo paradigma.
Na Idade Média, a cultura girava em torno da figura divina, na ideia de Deus. Na modernidade, centra-se no ser humano, na razão e em suas duas filhas diletas: a ciência e a tecnologia.

Um dos símbolos que melhor expressa esta passagem é a pintura de Michelangelo –A criação de Adão- no teto da Capela Sistina: Deus Pai, de barba longa, todo encoberto de mantos, representa o teocentrismo da época perante o homem desnudo, fortemente atraído para a Terra. O homem estende o dedo para não perder o contato com o transcendente, com o divino. A desnudez de Adão traduz o advento do antropocentrismo e a revolução que a modernidade representou em nossa cultura.

Episódio característico da modernidade ocorreu em 1682, quando mister Halley, baseado exclusivamente em cálculos matemáticos - pois não dispunha de instrumentos óticos -, previu que um cometa voltaria a aparecer nos céus de Londres dentro de 76 anos. Na ocasião, muitos o consideraram louco. Como, fechado em seu escritório, baseado em cálculos feitos no papel, poderia prever o movimento dos astros no céu? Quem, senão Deus, domina a abóbada celestial?”.

Mister Halley morreu em 1742, antes de se completarem os 76 anos previstos. Em 1758, o cometa, que hoje leva o seu nome, voltou a iluminar os céus de Londres. Era a glória da razão!

"Se é assim,” disseram, "se a razão é capaz de prever os movimentos dos astros como demonstraram Copérnico e Galileu -e depois Newton, um dos pilares da nossa cultura-, então ela haverá de resolver todos os dramas humanos! Porá fim ao sofrimento, à dor, à fome, à peste. Criará um mundo de luzes, progresso e felicidade!”.

Cinco séculos depois, o saldo não é dos mais positivos. Muito pelo contrário. Os dados são da FAO: somos 7 bilhões de pessoas no planeta, das quais metade vive abaixo da faixa da pobreza, e 852 milhões sobrevivem com fome crônica.

Há quem afirme que o problema da fome é causado pelo excesso de bocas. Em função disso, propõe o controle da natalidade. Oponho-me ao controle, e sou favorável ao planejamento familiar. O primeiro é compulsório, o segundo respeita a liberdade do casal. E não aceito o argumento de que há bocas em demasia. Nem falta de alimentos. Segundo a FAO, o mundo produz o suficiente para alimentar 11 bilhões de bocas. O que há é falta de justiça, de partilha, e excessiva concentração da riqueza.

Por atravessarmos um período de muita insegurança, as pessoas buscam respostas fora do razoável. Observe-se, por exemplo, o fenômeno do esoterismo: nunca Deus esteve tão em voga como agora. Suscita paixões e fundamentalismos, a favor ou contra.

A crise da modernidade culmina no momento em que o sistema capitalista alcança a sua suprema hegemonia com o fim do socialismo, e adquire um novo caráter, chamado de neoliberal.

Quais as chaves de leitura dessa mudança do liberalis­mo para o neoliberalismo? Sob o liberalismo, falava-se muito em desenvolvimento. Na década de 1960, surgiu a teoria do desenvolvimento, que incluía também a noção de subdesenvolvimento; criou-se a Aliança para o Progresso, destinada a "desenvolver” a América Latina.

A palavra ‘desenvolvimento’ tem certo componente ético, porque ao menos se imagina que todos devem ser beneficiados. Hoje, o termo é ‘modernização’, que não tem conteúdo humano, mas sim forte conotação tecnológica. Modernizar é equipar-se tecnologicamente, competir, lograr que a minha empresa, a minha cidade, o meu país, aproximem-se do paradigma primeiro-mundista, ainda que isso signifique sacrifício para milhões de pessoas.

O Mercado é o novo fetiche religioso da sociedade em que vivemos. Outrora, pela manhã nossos avós consultavam a Bíblia. Nossos pais, o serviço de meteorologia. Hoje, consultam-se os índices do Mercado...

Diante de uma catástrofe, de um acontecimento inesperado, dizem os comentaristas econômicos: "Vamos ver como o Mercado reage”. Fico imaginando um senhor, Mr. Mercado, trancado em seu castelo e gritando pelo celular: "Não gostei da fala do ministro, estou irado”. E na mesma hora os telejornais destacam: "O Mercado não reagiu bem frente ao discurso ministerial”.

O mercado é, agora, internacional, globalizado, move-se segundo suas próprias regras, e não de acordo com as necessidades humanas. De fato, predomina a globocolonização, a imposição ao planeta do modelo anglo-saxônico de sociedade. Centrado no consumismo, na especulação, na transformação do mundo em cassino global.

Diante da crise financeira que afeta o capitalismo e, em especial, direitos sociais conquistados nos últimos dois séculos, é hora de se perguntar: qual será o paradigma da pós-modernidade? Mercado ou a "globalização da solidariedade”, na expressão do papa João Paulo II?

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