Os “não-pessoas” da ministra francesa
Via Sul 21
Uma Europa que não é mais a mesma
Não, não é engraçado, mas é um tanto irônico. Quando a ministra da Saúde da França, Nora Berra, comete um “lapso” e diz para os sem-teto não saírem de casa durante o inverno,
ela sem querer evidencia essa grande transformação por que passa o
mundo e explicita que a sua França já não é mais a mesma. Foi um lapso.
Mas um lapso de quem: a) não está acostumada a lidar com esse tipo de
problema; b) não costuma considerar muito importante essa gente pobre
que normalmente não vota. O problema é ter quem comete esse tipo de
lapso no poder.
A letra ‘a’ diz respeito ao
empobrecimento da Europa. À crise. A uma França diferente da de alguns
anos atrás, uma França diante de problemas de “terceiro mundo”. Fui a
Paris pouco tempo atrás, na metade de janeiro. Sabia da crise, sabia do
desemprego, sabia do empobrecimento. Mas não imaginava a quantidade de
sem-teto que eu veria por lá. Às 2h da madrugada, hora em que o metrô
fecha nos fins de semana, todos os bancos de uma estação da periferia
serviam de cama. Em Londres, naquela Inglaterra onde a crise também está
pegando, é nítido o aumento de moradores de rua a cada mês, pelo menos pelos últimos seis meses.
É o retrato de uma Europa que há séculos não existia desse jeito.
Pobreza houve muitas vezes. Gente na rua, também. Desigualdade, muita.
Mas nunca antes no mundo capitalista a Europa se via deixando de ser a
referência, perdendo importância, vendo-se obrigada a pedir ajuda a
países do Sul. Nunca antes ela via inverter o cenário da geopolítica
mundial como agora, tendo que buscar alternativas em exemplos do Sul. E
principalmente, vendo que esse “Sul” de que a gente fala não é um país,
mas vários. Um momento em que o mundo fica cada vez mais multipolar.
Vamos
com calma, o Brasil ainda não é mais importante que a Europa como
referência mundial, e possivelmente não venha a ser. Mas o importante do
que está acontecendo agora é que os países do Sul, especialmente da
América Latina, crescem com uma política de inclusão enquanto os
europeus encolhem ao mesmo tempo em que excluem. São movimentos
inversos, e isso é fundamental para entendermos o que está acontecendo.
E, apesar de nossa desigualdade ainda ser enorme, aqui, ao contrário da
Europa, o Estado funciona, como testou a Katarina Peixoto em Porto Alegre.
O
lapso da ministra não é simplesmente uma gafe, o que nos leva à letra
‘b’. É o lapso da ministra de um governo conservador, reacionário, que
fala nas classes mais baixas apenas por obrigação, para não ficar feio, e
não porque realmente se importe com elas. Um governo que não pensa de
verdade em como as pessoas se sentem na rua no frio. Há quase um mês,
quando estive em Paris, o frio já era considerável, com temperaturas não
muito distantes de zero. Para mim, protegida com um casaco carésimo que
comprei com medo do inverno europeu e hospedada em um hostel pra lá de
ruim, mas com calefação, já era difícil. Agora imagina pra quem tem
pouca roupa e nenhum teto e com um frio muitos graus mais cruel do que
aquele, com neve.
Os sem-teto se multiplicam na
Europa não só porque ela está em crise, mas porque ela está recheada de
governos conservadores. Governos cujas medidas fazem aumentar a crise, o
que leva a que se elejam governos ainda mais conservadores (pelo medo
que o povo lá tem mostrado sentir, a exemplo recente das eleições
espanholas). Mas mesmo em tempos sem crise, ou pelo menos sem uma crise
tão grave, é normal a desigualdade crescer durante governos de direita,
como nos mostra o Reino Unido. Aumenta o desemprego, fica ainda mais
difícil subir de classe social e mais fácil cair. É a tendência natural
de governos que governam para o mercado, para as elites de que fazem
parte, e não para o povo, para o país. O que assusta é que a direita
ganha cada vez mais força. E não é só uma direita moderada. Muitas vezes
extrema, ela ganha espaço na França (Marine Le Pen é ameaça nas
próximas eleições), na Espanha, na Itália, no Reino Unido etc. etc. À
medida que ela ganha espaço, aumentam os os índices negativos dos
países, mas ninguém parece perceber muito a relação entre as duas
coisas. Não é tão óbvia?
P.S: A
foto, da agência AFP, é na Itália, onde o frio está castigando e o
governo é ainda pior, tendo passado de um conservador maluco pra um
indicado do mercado financeiro alçado ao cargo por um golpe de Estado.
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