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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, fevereiro 03, 2012

Zé Celso questiona decisão de Chico de vetar encenação de 'Roda Viva'


Musical de 1968 é um dos acontecimentos mais importantes da cultura brasileira
Escrito pelo compositor Chico Buarque e levado aos palcos em janeiro de 1968 pelo encenador José Celso Martinez Corrêa, o musical Roda Viva é visto como um dos mitos fundadores da cultura brasileira contemporânea. Ainda assim, pouquíssimos brasileiros tiveram a oportunidade de conhecer o texto da peça e presenciar uma montagem sua. Chico tem vetado qualquer reencarnação de Roda Viva. Lançado em 1968 pela (extinta) Editora Sabiá, dos escritores Fernando Sabino e Rubem Braga, o texto também está fora de catálogo há décadas.
"Há um tabu social por trás disso, uma coisa que precisa ser mexida", provoca Zé Celso. "É um resquício da ditadura, uma sequela, uma doença. O fato de Chico não publicar e não deixar montarr é muito estranho."
O que parece ser uma autocensura de Chico com relação a Roda Viva soa desconcertante porque se trata de um herói pop da resistência à ditadura militar, ele próprio censurado repetidas vezes pelo regime. O autor de Sabiá (1968), Apesar de Você (1970) e Cálice (1973) não dá detalhes sobre o que motiva a interdição, mas reconhece o veto falando por intermédio de seu assessor de imprensa, Mario Canivello. "A justificativa do Chico é simples: ele considera que as deficiências do texto ficam ainda mais evidentes à medida que o tempo passa. Houve um caso em que, se a memória não me trai, alunos da universidade UniRio tentaram colocar em cartaz uma montagem acadêmica da peça. Só esqueceram o pequeno detalhe de que precisavam antes do consentimento do autor", afirma Canivello.
"Falei com Marieta Severo, ela diz que Chico acha a peça horrível, fraca", conta Zé Celso, referindo-se à ex-mulher do artista, que interpretou a protagonista feminina de Roda Viva no Teatro Princesa Isabel, no Rio. "Não é suficiente, não se proíbe uma peça porque ela é fraca ou horrível. O artista não pode proibir a própria obra. Quer dizer, pode, se quiser, mas Chico, um sujeito ligado ao lado libertário, não pode."
Dirigida por Patrícia Zambiroli, a peça da UniRio a que Canivello se refere estrearia no Teatro Glória, em 2005, mas o autor não liberou. Outro que emperrou em Roda Viva foi Heron Coelho, que já havia reencenado os musicais buarquianos Gota d’Água (1975), em 2006, e Calabar - O Elogio da Traição (1973), em 2008. "Por critérios particulares do querido Chico, atendi ao pedido de não levar adiante o projeto, que estava avançado", admite Heron, cuidadoso. "Cancelei a montagem e passei adiante o patrocínio que tinha."
Roda Viva ficou eternizada como uma montagem de alto teor político, principalmente por causa dos episódios que marcaram duas encenações em 1968. Em 17 de julho, numa ação batizada "Quadrado Morto", o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o Teatro Galpão, de Ruth Escobar, onde ocorria a montagem paulistana da peça. Depredaram o espaço, despiram e espancaram o elenco, que incluía Rodrigo Santiago, Marília Pêra (no papel que fora de Marieta), Antônio Pedro e Paulo César Pereio. A agressão se repetiu em 3 de outubro, em Porto Alegre, dessa vez por ação direta do Exército brasileiro, segundo Zé Celso. Roda Viva morreu ali, dois meses antes do AI-5.


"Hoje, eu voltaria a fazer Roda Viva, de birra. Deveria ser remontada, porque fez uma revolução no teatro brasileiro", diz Zé Celso. "Chico vinha de uma formação muito tradicionalista, os Buarque de Holanda eram muito religiosos. A peça não tinha nu, mas ainda assim ele pediu: ‘Olha, Marieta não pode ficar nua’. Voltar a Roda Viva talvez fosse libertador, porque deve ter um trauma. Diziam na época que a peça era minha, que era alienada. Ele acreditou nisso", afirma. Zé Celso também questiona a suposição de que a indisposição atual do autor com a face "política" de sua obra explica sua guerra pessoal contra a peça, estreada quando ele tinha 23 anos.
"Roda Viva é constantemente supervalorizada na obra do Chico", opina o historiador Gustavo Alonso, autor do livro ensaístico Simonal - Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga" (Record, 2011), em que tece considerações sobre a construção da imagem pública de Chico como herói da resistência esquerdista. "Não é um texto político, é uma crítica à jovem guarda", Alonso afirma.
A preocupação central de Chico à época era criticar as engrenagens da produção de ídolos pop - podia estar se referindo a Roberto Carlos ou mesmo a si próprio. "Ele trata das metamorfoses a que a máquina de marketing obriga Benedito da Silva, que se transforma em Ben Silver, um ídolo de iê-iê-iê", evoca Zé Celso. "Mas o personagem fica ultrapassado porque vem a linha da música brasileira, é quando canta Roda Viva. Em seguida, surge a turma de Geraldo Vandré, da militância, da música ideológica. E depois é comido pela máquina. É obrigado a se suicidar, e a mulher dele, Marieta, toma seu lugar, vira uma coisa parecida com Caetano Veloso, mas mais pro hippie."
Zé Celso credita ao coro de Roda Viva grande parte do sucesso da peça em 1968. "Era toda uma fauna inédita, tinha negro, gay, mulher, gente feia, gente bonita, cientista, ambientalista. De repente, caíam em cima daquele público supercareta do início de 1968. Era um estupro, um estupro com exaltação." Entre os atores do coro, estavam Pedro Paulo Rangel, Zezé Motta e André Valli. "Nós começamos isso no Brasil. Foi um ano antes de Hair, que não é nada diante de Roda Viva. O Brasil nesse sentido foi vanguarda, porque tudo começou a explodir aqui em 1967. No resto do mundo explodiu em 1968." 
*GilsonSampaio

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