O fim de um ciclo político
Semanas atrás escrevi sobre o fim da geração das diretas, o grupo que, a
partir de São Paulo, dominou a cena política nacional, através do PSDB e
do PT.
Do lado tucano, Covas, Fernando Henrique, Sérgio Motta, entre outros; do
lado petista, Lula, Dirceu, Mercadante, Suplicy, Martha. Do lado dos
peemedebistas históricos, Ulisses e Tancredo.
De certo modo, foram desbravadores da democracia brasileira, conseguindo
definir um padrão de governabilidade que permitiu ao ornitorrinco voar.
* * *
Saía-se da ditadura praticamente sem sociedade civil. Os partidos
políticos dividiam-se entre posições muito simplórias: contra ou a favor
do regime anterior. Não havia maiores definições programáticas. E o
equilíbrio do Executivo era constantemente bombardeado pela
instabilidade econômica e por dois tipos de demanda: a do Congresso e a
da mídia.
Não era tarefa fácil equilibrar a estabilidade democrática em meio a ventos tão implacáveis.
* * *
De Sarney até FHC, o único instrumento de pacificação política foram os
pacotes econômicos, mirabolantes, mas que, de tempos em tempos,
conferiam algum fôlego político aos governantes. Foi assim com os
sucessivos planos econômicos do governo Sarney, Collor, até o
derradeiro, o Plano Real.
* * *
A partir daí, consolidava-se a dualidade PSDB-PT paulistas, comandados
pelos personagens das diretas-já. E, em cada partido, conviveram dois
personagens: o líder (simbólico ou real) e o que botava a mão na massa.
Um conjunto de circunstâncias jogou o PSDB nas mãos de FHC, o líder
simbólico, e de Sérgio Motta, o que botava a mão na massa. Figura
generosa, impulsiva, Motta era o motor do partido, o que sujava as mãos
(como no caso da votação da reeleição), acolhia os desabrigados,
mantinha a chama acesa - ao lado do governador Mário Covas, em São
Paulo.
Pouco antes de morrer, conhecendo o caráter de FHC, Motta deixou o
bilhete histórico, pedindo que não se apequenasse. Apequenou-se.
Tornou-se refém dos financistas do partido, abraçou o neoliberalismo
mais desbragado, abandonou o discurso social-democrata e deslumbrou-se
definitivamente com os salões.
Com isso, escancarou uma rodovia para que entrasse o discurso social do PT.
* * *
Do mesmo modo que no PSDB, no PT havia o líder, Lula, e o que botava a mão na massa, José Dirceu.
Coube a Dirceu o papel fundamental de consolidar o arquipélago de
tendências do PT, muitas vezes com uma objetividade dura que deixou
ressentimentos, mas que liberou Lula para montar as estratégias maiores
do partido.
Eleito Lula, Dirceu teve papel central na transição. Comandou intenso
processo de negociação com o governo que saía, incluindo um pacto de não
agressão que varreu para baixo do tapete inúmeros episódios obscuros do
governo anterior.
* * *
Tentou, depois, absorver toda a tecnologia de governabilidade do governo
que saía, incluindo operadores, lobistas e tudo isso em um momento em
que, com os principais quadros do partido indo para o governo, o PT
viu-se meio acéfalo.
Mas não foi seguida a principal lição de FHC - aliar-se a um grande
partido ônibus, como o PMDB, assim como o PSDB se aliou ao DEM.
O desafio de administrar o varejo acabou resultando no mensalão.
O "mensalão" foi um divisor de águas. E é interessante entender como se comportaram os atores políticos depois dele.
O pós-mensalão e Lula - 1
No início do governo, Lula teve que enfrentar uma enorme crise de
mercado, com o dólar explodindo, o aumento da inflação e a inexperiência
do novo partido com o poder. Foi nesse período que o trabalho de José
Dirceu, junto ao meio político, e Antonio Palocci, junto ao mercado, foi
fundamental para garantir a governabilidade. Passada a crise, o poder
de Dirceu acabou sendo incômodo para o próprio Lula.
O pós-mensalão e Lula - 2
O "mensalão" acabou provocando a saída de Dirceu e dos demais
companheiros que haviam carregado o piano do jogo pesado inicial. A luta
pela sobrevivência política exigiu tudo de Lula. E aí apareceu o
político fulgurante em sua plenitude. De um lado, passou a colher os
frutos das políticas sociais do início do governo. De outro, precisou
dar um impulso gerencial sem precedentes ao seu governo.
O pós-mensalão e Lula - 3
Finalmente, o enorme desgaste produzido pelo episódio impulsionou a
renovação do PT. A cara do partido não podia ser mais a dos pioneiros,
os que ajudaram no trabalho hercúleo de criar um partido nacional. É
nesse contexto que a intuição política de Lula leva à indicação de Dilma
Rousseff para presidente e de Fernando Haddad para concorrer à
prefeitura de São Paulo. Além da aproximação com Eduardo Campos.
O pós-mensalão e FHC - 1
Caminho inverso percorreu FHC. Sem Mário Covas, tornou-se a única
referência do PSDB. Sua falta de vontade de governar, a falta de visão
de futuro (ao não perceber o tempo social sucedendo o tempo da
estabilização), a escassez de ideias (que o levou a adotar acriticamente
o receituário neoliberal), e o neodeslumbramento da mídia (para
caracterizá-lo como o antiLula) cobraram sua conta.
O pós-mensalão e FHC - 2
Mais e mais, FHC imbuiu-se do discurso moralizante, de uma retórica que,
embora não tão grosseira quanto a de José Serra, empurrava para o
conflito. Nas palestras e, principalmente, nos artigos para o Estadão e o
Globo, não conseguia desenvolver mais do que bordões soltos, sem
nenhuma profundidade. Mais que isso, não preparou o partido para a
renovação, para o aparecimento de novos quadros.
O pós-mensalão e FHC - 3
Chega-se, ao final do longo processo político, que vem da
redemocratização até os dias atuais, com os resultados conhecidos. No
campo das lideranças, Lula conseguiu não apenas reeleger o sucessor como
reestruturar o partido; já FHC saiu derrotado do governo e deixa um
partido em ruínas. Mas a história há de se lembrar dos construtores, os
que colocaram a mão na massa e pagaram por isso: Sérgio Motta e José
Dirceu.
Luis NassifNo Advivo
*comtextolivre
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