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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, dezembro 03, 2012

O caminho como arquétipo

Jornal do BrasilLeonardo Boff*
Tenho especial fascínio por caminhos, especialmente caminhos de roça, que sobem penosamente a montanha e desaparecem na curva da mata. Ou caminhos cobertos de folhas de outono, multicores e em tardes mortiças, pelos quais andava nos meus tempos de estudante, nos Alpes do sul da Alemanha. É que os caminhos estão dentro de nós. E há que se perguntar aos caminhos o porquê das distâncias, porque, por vezes, são tortuosos, cansativos e difíceis de percorrer. Eles guardam os segredos dos pés dos caminhantes, o peso de sua tristeza, a leveza de sua alegria ao encontrar a pessoa amada.
O caminho constitui um dos arquétipos mais ancestrais da psiqué humana. O ser humano guarda a memória de todo o caminho perseguido pelos 13,7 bilhões de anos do processo de evolução. Especialmente guarda a memória de quando nossos antepassados emergiram: o ramo dos vertebrados, a classe dos mamíferos, a ordem dos primatas, a família dos hominidas, o gênero homo, a espécie sapiens/demens  atual.
Por causa desta incomensurável memória, o caminho humano apresenta-se tão complexo e, por vezes, indecifrável. No caminho de cada pessoa trabalham sempre milhões e milhões de experiências de caminhos passados e andados por infindáveis gerações. A tarefa de cada um é prolongar este caminho e fazer o seu caminho de tal forma que melhore e aprofunde o caminho recebido, endireite o torto e legue aos futuros caminhantes um caminho enriquecido com sua pisada.
Sempre o caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta, e, simultaneamente, ele é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Mergulhamos na escuridão e na confusão. Como hoje, a humanidade, sem rumo e num voo cego, sem bússola e estrelas a orientar as noites ameaçadoras.
Cada ser humano é homo viator, é um caminhante pelas estradas da vida. Como diz o poeta cantante indígena argentino Atahulpa Yupanki, “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência pronta. Devemos construí-la. E para isso importa rasgar caminho, a partir e para além dos caminhos andados que nos antecederam. Mesmo assim, o nosso caminho pessoal e particular nunca é dado uma vez por todas. Tem que ser construído com criatividade e destemor. Como diz o poeta espanhol António Machado: “Caminhante, não há caminho, se faz caminho caminhando”.
Efetivamente, estamos sempre a caminho de nós mesmos. Fundamentalmente, ou nos realizamos ou nos perdemos. Por isso, há basicamente dois caminhos como diz o primeiro salmo da Bíblia: o caminho do justo e o caminho do ímpio, o caminho da luz ou o caminho das trevas, o caminho do egoísmo ou o caminho da solidariedade, o caminho do amor ou o caminho da indiferença, o caminho da paz ou o caminho do conflito. Numa palavra: ou o caminho que leva a um fim bom ou o caminho que leva a um abismo.
Mas, prestemos atenção: a condição humana concreta é sempre a coexistência dos dois caminhos e o entrecruzamento entre eles. No bom caminho se esconde também o mau. No mau, o bom. Ambos atravessam nosso coração. Esse é o nosso drama, que pode se transformar em crise e até em tragédia.
Como é difícil separar totalmente o joio do trigo, o bom do mau caminho, somos obrigados a fazer uma opção fundamental por um deles: pelo bom, embora nos custe renúncias e até nos traga desvantagens; mas pelo menos nos dá a paz da consciência e a percepção de fazermos o certo. E há os que optam pelo caminho do mal: este é mais fácil, não impõe nenhum constrangimento, pois vale tudo, contanto que traga vantagens. Mas cobra um preço: a acusação da consciência e os riscos de punições e até da eliminação.   
Mas a opção fundamental confere a qualidade ética ao caminho humano. Se optamos pelo bom caminho, não serão pequenos passos equivocados ou tropeços que irão destruir o caminho e seu rumo. O que conta realmente, frente à consciência e diante dAquele que a todos julga com justiça, é esta opção fundamental.
Por esta razão, a tendência dominante na teologia moral cristã é substituir a linguagem de pecado venial ou mortal por outra mais adequada à unidade do caminho humano: fidelidade ou infidelidade à opção fundamental. Não se há de isolar atos e julgá-los desconectados da opção fundamental. Trata-se de captar a atitude básica e o projeto de fundo que se traduz em atos e que unifica a direção da vida. Se esta opta pelo bem, com constância e fidelidade, será ela que conferirá maior ou menor bondade aos atos, não obstante os altos e baixos que sempre ocorrem mas que não chegam a destruir o caminho do bem. Este vive no estado de graça. Mas há também os que optaram pelo caminho do mal. Por certo passarão pela severa clínica de Deus caso acolherem  misericórdia  de suas maldades.
Não há escapatória: temos que escolher que caminho construir e como seguir por ele, sabendo que “viver é perigoso” (G. Rosa). Mas nunca andamos sós. Multidões caminham conosco, solidárias no mesmo destino, acompanhadas por Alguém chamado ”Emanuel, Deus conosco”.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor. -  lboff@leonardoboff.com

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