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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, maio 03, 2013

Brasil: Operação de “limpeza social” dos sem abrigo

Nos últimos 15 meses foram assassinados 195 sem abrigo no Brasil, país onde existem não menos de 1,8 milhões de pessoas a viver em ruas e praças das cidades, e onde menos de 25% das cidades têm políticas viradas para elas.

À pobreza e ao desamparo juntam-se agora os ódios "sociais" que fazem muitos erigir-se em juízes e fazer justiça pelas próprias mãos. Foto de Rodrigo Soldon
O Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos, um organismo patrocinado pela Conferência Episcopal de Brasil, mostrou-se preocupado com uma possível "limpeza social" das pessoas sem abrigo, por causa do Mundial de futebol do próximo ano. O Conselho Nacional de Procuradores Gerais (CNPG) expôs também os seus temores ao ministro da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho. Ações contra os sem abrigo estão a ocorrer especialmente nas cidades que vão acolher os jogos do Mundial.
As organizações temem que a “limpeza” dos que vivem na rua por motivos diferentes, seja um eufemismo para dar sinal verde aos verdugos de pessoas indefesas, invisíveis para a sociedade, mas que poderiam ser vistas pelos milhões de turistas que visitarem o Brasil no ano que vem. Sem contar que o papa Francisco chega ao Rio de Janeiro dentro de três meses e estarão presentes na capital carioca mais de dois milhões de pessoas para participar na Jornada Mundial da Juventude.
Nos últimos 15 meses foram assassinados 195 sem abrigo, a maioria queimados por anónimos, como Jorge Afonso, de 49 anos, assassinado neste domingo em Jacupiranga, no interior de São Paulo.
Casos semelhantes ocorreram em Goiânia, cidade do centro-oeste para onde foi enviada uma comissão do Ministério de Direitos Humanos para analisar os últimos 29 assassinatos de pessoas sem abrigo.
Segundo dados oficiais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) existem no Brasil não menos de 1,8 milhões de pessoas a viver em ruas e praças das cidades, e menos de 25% das cidades têm políticas para elas.
Só em São Paulo calcula-se que umas 15.000 pessoas não têm casa, 5.000 mais que há dez anos. Apesar de em 2009 o governo de Lula da Silva ter lançado um programa a favor dos sem abrigo, as autoridades costumam fechar os olhos diante desta realidade.
E no entanto, para o sociólogo Maurício Botrel, do Centro Nacional de Direitos Humanos, são imprescindíveis as políticas locais a favor destas pessoas para evitar uma "limpeza social" levada a cabo geralmente na escuridão da noite e aplaudida em silêncio.
Em 2009, repórteres do diário Folha de São Paulo descobriram que a prefeitura do Rio de Janeiro estava a recolher à pressa mendigos no trajeto onde iria passar a comitiva da Comissão do Comité Olímpico (COI), responsável por dar um parecer sobre a realização do Mundial na cidade.
Polícias paulistas suspeitos de “limpeza social"
Investigadores de São Paulo acham que os últimos assassinatos de indigentes sem abrigo podem ser obra de "esquadrões da morte" que tentam eliminar os mais de 10 mil mendigos que vivem nas ruas da maior cidade do Brasil.
Pela primeira vez desde que se iniciaram as investigações, há pouco mais de uma semana, o comissário Luiz Fernando Lopes Teixeira introduziu polícias e guardas de segurança entre os suspeitos dos brutais ataques perpetrados na capital económica e financeira de Brasil, que deixaram doze mendigos mortos nas últimas semanas.
Até agora, havia três hipótese para explicar os ataques: jovens neonazis ou cabeças rapadas, criminosos contratados por comerciantes para desfazer-se dos indesejáveis ou uma disputa interna entre os próprios indigentes.
Mas nas últimas horas ganhou força a ideia de que se trata de grupos de “limpeza social" compostos de polícias e guardas de segurança. Pedro Montenegro, defensor geral do povo da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, considera que é claro que se trata de crimes de um "grupo organizado", o que exige maior proteção social aos habitantes da rua.
Factos semelhantes ocorreram na década de 90 no Rio de Janeiro, onde centenas de meninos e adolescentes foram assassinados anualmente por esquadrões da morte, compostos em muitos casos por agentes de polícia fora de serviço, contratados pelos comerciantes locais para "limpar" a zona de supostos delinquentes e pessoas que perpetravam delitos menores.
Atualmente, as autoridades da maior cidade do Brasil – com 10,5 milhões de habitantes – temem que essas práticas homicidas se estejam a instalar no lugar onde vivem uns 10.400 sem abrigo, segundo cálculos da Pastoral do Povo das Ruas em São Paulo.
Mas a inquietação paulista estende-se a outras zonas, como Porto Alegre, onde existe o medo de que grupos de fanáticos repitam atentados, como explicou Clarina Glock, jornalista que coordena a publicação de um jornal feito por residentes da rua “Boca de rua".
Nessa cidade do sul do país não existem os grupos tradicionais de São Paulo, que discriminam e atacam os procedentes do Nordeste, a região que é fonte da maior migração interna de Brasil. Mas "sim há grupos de skinheads", e a demora para identificar os criminosos de São Paulo pode estimular ataques similares noutros lados, acrescentou.
Além dos casos de São Paulo, outros dois mendigos foram assassinados na semana passada no estado de Pernambuco (nordeste) por homens que os atingiram a tiro, disparados de um veículo em movimento.
A polícia suspeita de que estes dois homicídios foram cometidos por uma bando de "extermínio" que atua na cidade de Recife, capital de Pernambuco, e que já é investigada devido a outros ataques a sem abrigo.
Assim, o panorama dos mais pobres no Brasil – e na América Latina em general – é cada vez mais dramático, porque à pobreza e ao desamparo juntam-se agora os ódios "sociais" que fazem muitos erigir-se em juízes e fazer justiça pelas próprias mãos.
Em junho de 1990, a Amnistia Internacional publicou um relatório sobre as violações de direitos humanos perpetradas nas principais cidades brasileiras, que chegava à conclusão de que a polícia tinha respondido à crescente violência social fazendo justiça pelas próprias mãos. Este documento alertava para as práticas como a execução extrajudicial de meninos e adultos por parte da polícia e dos esquadrões da morte, o emprego da tortura pelos agentes de segurança e o tratamento desumano que recebiam os presos. Catorze anos mais tarde, as violações de direitos humanos relacionadas à violência urbana continuam a ser um problema que é preciso enfrentar.
*Gilsonsampaio

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